O texto que vão ler é da autoria do Prof. Gabriel Silva, que muitos de vós certamente conhecerão. O Prof. Gabriel traduziu recentemente duas obras fundamentais da literatura latina: as Bucólicas e as Geórgicas de Vergílio. O episódio de peste comentado neste artigo encontra-se precisamente no livro III das Geórgicas (versos 476-566).
Públio Vergílio Marão (70 a.C. - 19 a.C.) é um dos principais nomes que a literatura latina da Antiguidade nos deixou. As suas três obras, Bucólicas, Geórgicas e Eneida, moldaram toda a cultura ocidental, e o mundo de hoje seria muito diferente se algum destes três poemas não tivesse existido. Se a Eneida é comummente considerada a obra mais conhecida de Vergílio, tanto as Bucólicas como as Geórgicas foram de vital importância para muita da literatura produzida durante o Renascimento, e são as Geórgicas, talvez a obra mais (injustamente) desconhecida de Vergílio, que nos vão ocupar nas próximas linhas.
Composto em quatro livros (ou cantos), este poema trata dos trabalhos do campo, da vida agrícola, das árvores, de animais. A agricultura dá o arranque para o tratamento de muitos outros temas: sinais atmosféricos, como cuidar das vinhas e das oliveiras, de cavalos e até de abelhas. Se há um tom de relativa acalmia que percorre a obra, Vergílio termina, no entanto, o terceiro livro com um episódio marcadamente negativo: a peste que assola a Nórica, região que hoje corresponde a grande parte da Áustria e a parte da Baviera. O episódio começa assim:
Aqui outrora surgiu um tempo deplorável e doentio
que ficou em brasa no pino do Outono
e entregou à morte todas as raças de gado, todas as raças de feras,
corrompeu os lagos e infectou os pastos com uma tal peste. (III, 478-481)
Não sabemos em que momento histórico esta peste aconteceu (se é que de facto aconteceu), nem as razões que a levaram a assolar esta região, mas é-nos indicado que foi durante o Outono e causou a morte de inúmeros animais, cujas utilidades são variadas. No verso 160 do terceiro livro, Vergílio indica que alguns dos bezerros devem ser postos de parte para, posteriormente, serem sacrificados nos altares, dedicados aos deuses. Porém, após a morte provocada pela peste, estes animais deixam de estar aptos para o sacrifício e os homens da Nórica perdem, assim, uma das formas de honrar as divindades. Este é um aspecto importante que percorre todo o poema: a harmonia entre deuses e homens para que a sociedade possa continuar em paz.
O poeta prossegue descrevendo com detalhe todos os sintomas e aflições que atingem os animais: perdem a força e a vontade de comer, a pele enrijece, a respiração torna-se ofegante. Curiosamente, estes são os mesmos sintomas que s animais apresentam quando são tomados pelo amor. Vergílio joga com a sua própria poesia e recupera informações passadas, aparentemente inofensivas, para, mais tarde, as completar e dar-lhes uma nova vida. O mesmo acontece com a descrição do comportamento de alguns animais durante o período da praga:
O lobo não experimenta as armadilhas em redor dos currais
nem, noctívago, rodeia os rebanhos: doma-o um cuidado
mais premente. Os tímidos gamos e os cervos fugazes
vagueiam agora entre os cães e em redor das casas.
Já as vagas varrem a prole do imenso mar e toda a espécie
de seres marinhos até à costa, como corpos de náufragos;
as focas fogem para os rios, a eles desacostumadas.
Morre a víbora, protegida em vão pelos curvos esconderijos,
e as cobras de água de escamas encrespadas, atónitas. (III, 537-545)
Este excerto mostra a atitude cautelosa que os lobos, astutos, assumem: observando toda a mortandade que tem atingido as suas presas, deixam de investir contra os rebanhos, precavendo-se da doença. Os gamos e os cervos, por sua vez, coabitam com os cães, sem que estes últimos os ataquem. Nem as cobras escapam a toda esta chacina. Se não soubéssemos, porém, que estávamos diante do relato dos efeitos de uma peste, e se retirássemos estes versos do contexto original, facilmente poderíamos pensar que o poeta estava a descrever alguns dos tópicos de uma longínqua Idade de Ouro, esse tempo mitológico em que a natureza tudo produzia por vontade própria, sem a necessidade de ser ferida pelo ferro do arado, em que os animais coexistiam pacificamente e perigos alguns afligiam a raça humana. Esta Idade de Ouro é um tópico muito apreciado pelos poetas, e Vergílio não é excepção. Na Bucólica IV, canta:
As cabrinhas, por sua conta, trarão para casa os úberes
cheios de leite, e os rebanhos não temerão os grandes leões.
O teu berço derramará para ti delicadas flores.
Morrerá a cobra, e morrerá a erva que esconde o veneno:
por toda a parte brotará o assírio amomo. (IV, 21-25)
Esta praga atinge apenas os animais, estando os homens aparentemente livres de perigo. No entanto, a crise no mundo animal é também a crise no mundo humano, uma vez que ambos se complementam. Além de facilitarem o trabalho dos homens, são também um veículo de comunicação com o divino. Estando interrompida esta forma de comunicar, poderá haver uma quebra na chamada pax deorum (paz dos deuses). É essa pax que se pretende para harmonizar o mundo dos deuses e o dos homens. O poeta compõe as Geórgicas durante um período de grandes convulsões sociais, encontrando-se a sociedade fragmentada e dividida devido aos anos de guerras e conflitos entre os exércitos de Marco António e de Octaviano (futuramente Augusto). Octaviano, após a batalha de Áccio (31 a.C.) e a derrota sobre Marco António e Cleópatra, pretende levar a cabo uma reestruturação da sociedade romana, recuperando normas e valores entretanto esquecidos e perdidos, que levem à boa relação entre deuses e homens.
Vergílio, ao descrever estes eventos na Nórica, não o faz fora de contexto, uma vez que tem conhecimento da vasta tradição literária que o antecede. Encontramos relatos de pestes já na Ilíada, na obra História da Guerra do Peloponeso de Tucídides (século V a.C.), em que é narrada a peste que grassou na cidade de Atenas, e, mais próximo cronologicamente de Vergílio, no vasto poema de Lucrécio Sobre a Natureza das Coisas (século I a.C.).