top of page
Foto do escritormarcoshelena

Caixa de Pandora - Aula 2

A partir desta aula, todas as explicações e exercícios das próximas “Caixas de Pandora” pressupõem que já sabes ler e escrever o alfabeto grego. Por isso, se ainda não é o caso ou se ficaste com algumas dúvidas sobre a última aula, aconselho-te a revê-la integralmente aqui.

Curiosidades sobre algumas letras gregas

Como tinha prometido no post anterior, hoje ainda vamos ver como algumas letras gregas dispõem de uma longevidade invejável. Começamos com o dêlta (Δ/δ). A sua forma maiúscula (um triângulo) é muito sugestiva, pelo que não é de admirar que os Antigos tenham chamado precisamente “delta” à foz do Nilo. Note-se, porém, que o delta é visto da perspetiva da Grécia continental. (Já sabemos que os Gregos eram um bocado egocêntricos!) Porém, também nos nossos dias, há uma marca de café que adotou esta letra grega como o seu símbolo característico.

Passemos agora para o campo das ciências. Para quem sabe alguma coisa de física, o símbolo Δ significa “variação”, fazendo eco da palavra grega διαφορά = diferença, que começa precisamente por um delta.


Outra letra grega que triunfou ao longo de todos estes séculos foi o pi (π), que toda a gente sabe que equivale, aproximadamente, a 3,14. E porque é que se deu o nome desta letra grega à constante matemática? Se soubermos para que serve o pi em matemática, chegamos lá facilmente. Ora, nós precisamos do pi para calcular, por exemplo, o perímetro de uma circunferência. Em grego, “perímetro” escreve-se περίμετρος = comprimento (μετρος) à volta (περί). O pi vem precisamente da primeira letra desta última palavra.

Estes poucos exemplos são suficientes para ficarmos com uma ideia clara de como ainda hoje as letras gregas estão presentes um pouco por toda a parte, mas, com especial importância, nas ciências. Afinal, é uma homenagem merecida aos antigos gregos, que contribuíram de maneira insubstituível para o avanço destas áreas do saber.


Uma das mais antigas inscrições em Grego Antigo

Também tinha prometido da última vez que hoje veríamos algumas inscrições gregas. Vai ser uma oportunidade de percebermos melhor como os gregos realmente escreviam. Em baixo, está uma fotografia da inscrição de Dipylon. Este vaso está datado como tendo sido produzido no século VIII a.C.. Ao lado da fotografia, encontra-se uma transcrição da inscrição.


Conseguem identificar alguma das letras gregas que aprendemos na última aula? Se eu for sincero, lá encontro uma voga aqui ou ali, mas não consigo decifrar muito mais. Na verdade, há várias dificuldades em jogo. Primeiro, estas letras ainda refletem uma grafia arcaica. Por outro lado, a inscrição está escrita como realmente se escrevia na Antiguidade: em maiúsculas e sem espaçamento entre as letras. Para avaliarem corretamente a dificuldade da tarefa, dou-vos a tradução literal desta inscrição em português, mas escrita exclusivamente em maiúsculas e sem espaçamento entre as letras (afinal, como os gregos a teriam escrito):

QUEMAGORADOSDANÇARINOSTODOSMAISDELICADAMENTEDANÇARAELEESTE…

Agora, com espaçamentos:

QUEM AGORA DOS DANÇARINOS TODOS

MAIS DELICADAMENTE DANÇAR A ELE ESTE…

Depois, com minúsculas e pontuação:

Quem agora dos dançarinos todos mais delicadamente dançar, a ele este…

Por fim, com a ordem natural do português:

Quem de todos os dançarinos dançar agora

mais delicadamente, a ele este [vaso será dado].

Ufa! Foi um nadinha complicado… Assim, damos mais valor ao trabalho de quem estuda estas inscrições. É uma luta constante contra textos fragmentários, letras mal conservadas, ideias difíceis de interpretar! Se quiseres explorar mais esta questão, podes sempre procurar informações sobre outras inscrições famosas. Para começar, eu recomendo a Taça de Nestor. Deixa o resultado das tuas investigações nos comentários.


O grego ao serviço da ortografia


Vou agora pagar a terceira e última promessa, respondendo à questão que deixei no ar na última aula: "Como é que o grego nos pode ajudar a acabar com certos erros ortográficos?". A resposta está precisamente nas letras gregas.


Quem nunca se perguntou por que razão, em inglês e francês, temos de escrever th, y, ph ou ch, enquanto em português escrevemos simplesmente t, i, f ou qu? Vejamos as seguintes palavras:

· theater/théâtre -> em português "teatro";

· abysm/abyme -> em português “abismo”;

· physics/physique -> em português “física”;

· chemistry/chimie -> em português “química”.

Ora bem, o grego põe tudo em pratos limpos. O que se passa é que essas palavras tinham na origem um θ, um υ, um φ ou um χ. Portanto, em francês e inglês, foram transliteradas como th, y (ou não se fosse chamar “i grego”), ph e ch – e assim se mantiveram até aos nossos dias.

θέατρον / ἄβυσσος / φύσις / χημεία


A fisionomia da cara de Sócrates

Para concluirmos em beleza a nossa aula, vamos ver como é fácil aprender vocabulário em grego. Sabem que dominar vocabulário é a chave do sucesso na aprendizagem de todas as línguas e com o grego não é certamente diferente. Portanto, agora que sabes o alfabeto, podes lançar-te à caça das palavras gregas!

Dizia, agora mesmo, “em beleza”, mas a fealdade da cara de Sócrates, a quem pertence o busto mais abaixo, tornou-se proverbial na Antiguidade. Contudo, não é assim tão repugnante ou disforme que não consigamos identificar as diferentes partes do seu rosto (escultura do séc. I d.C.).




Consegues identificar todas as partes do corpo assinaladas na imagem? À partida, deves chegar lá, associando cada nome grego a uma das seguintes doenças em português:

rinite / estomatite / cefaleia / laringite /

glossalgia / otite / odontalgia / oftalmia

Estou certo de que, depois deste exercício, também podes dizer facilmente o nome dos médicos especialistas de cada uma destas partes da cara. Podes deixar as tuas propostas nos comentários. Mas há outras palavras em português que contêm estes elementos gregos, como por exemplo: "poliglota", "rinoplastia" e até "otário". De onde vêm?


Ainda outro exercício sobre as partes do rosto: tens, agora, de associar uma expressão tirada da Bíblia à sua tradução em português. Vais ver que chegas lá facilmente, porque só precisas de identificar as partes do rosto que já conheces. Ainda assim, para ajudar, essas partes encontram-se a negrito.

(A) ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος (Mateus, V, 38)

(B) ὁ Χριστὸς κεφαλὴ τῆς ἐκκλησίας (Efésios, V, 23)

(C) ἔβαλεν τοὺς δακτύλους αὐτοῦ εἰς τὰ ὦτα αὐτοῦ (Marcos, VII, 33)

(D) γλῶσσαι ὡσεὶ πυρὸς (Atos, II, 3)

(E) ἥψατο τοῦ στόματός μου (Jeremias, I, 9)

(F) τάφος ἀνεῳγμένος ὁ λάρυγξ αὐτῶν (Salmos, V, 10)

(1) Línguas como de fogo

(2) A sua garganta é um sepulcro aberto

(3) Cristo é a cabeça da igreja

(4) Olho por olho e dente por dente

(5) (Deus) tocou na minha boca

(6) (Jesus) colocou os seus dedos nas orelhas dele

Da cabeça aos pés: uma parafernália somática

Apesar de já termos passado em revista os diferentes constituintes do rosto humano, ainda não sabemos como se diz “corpo” em grego. Para isso, leiamos as palavras da consagração na Divina Liturgia de São João Crisóstomo:

Λάβετε, φάγετε· τοῦτό μού ἐστι τὸ σῶμα

Πίετε ἐξ αὐτοῦ πάντες· τοῦτό ἐστι τὸ αἷμά μου…

As palavras gregas que designam o “corpo” e o “sangue” estão a negrito. Consegues pensar em palavras portuguesas que contenham esses elementos? Atenção: em português “soma” não tem nada a ver com “corpo”, porque vem do latim summa!

O componente soma- encontra-se em “somático” (lá em cima, a abrir esta secção). O componente hema- aparece em “hematoma”, “hemoglobina”, “hemorragia”, “hemorroida”, “hemodiálise”…


Bem, hoje ficamos por aqui. Foi uma estopada, hein? Mas valeu a pena. Descobriste como sabes uma série de palavras gregas, mesmo sem nunca teres pensado nisso. Lembra-te: o grego não para e, na próxima quinta-feira, cá estamos nós para mais palavras sobre o corpo, mas também sobre os números e a alimentação. Até lá e bom estudo!

49 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page