Setembro, domingo muito quente e soalheiro em Tomar. Era o dia em que tornava a encontrar as minhas amigas e companheiras de trabalho. Mas era um dia diferente: estávamos prestes a iniciar o novo ano letivo e o reencontro não era no Colégio, mas sim na terra que me viu crescer. Eu, de pé em cima de um pequeno muro, com as mãos apoiadas nos ombros do meu pai, procurava avistar os carros que passavam uns atrás dos outros. Mas havia demasiado movimento e o meu desejo de as voltar a encontrar deixava-me incapaz de concentrar fosse no que fosse. O meu pai, comigo apoiada nos seus ombros, enrolava mais um pouco o bigode enquanto se perdia em pensamentos, provavelmente formalizava na sua cabeça o que esperava ensinar às educadoras.
Eis que, de repente, surge ao longe um grupo de raparigas, que se ajeitam enquanto caminham e que invadem entusiasmadas a área, procurando-me. Salto do muro e com grande alegria digo para o meu pai – “São elas!”. “Então, diga-me lá quem são.” – disse o meu pai. Mas já não fui a tempo de as descrever pois era uma atrás da outra a quererem abraçar-me e a quererem saudar o meu pai. Entre gargalhadas e abanicos, tendo em conta o calor que estava, cada uma se apresentou e sem mais rodeios demos início à visita ao Convento de Cristo.
Com o percurso mais que pensado e mais que conhecido, o meu pai guiou-nos da melhor maneira possível, contando-nos a história e curiosidades sobre a terra templária e o Convento de Cristo. Depois de apreciarmos a vista sobre a cidade de Tomar e já dentro das muralhas, parámos diante do pórtico manuelino da Charola do Convento e observámos todos os detalhes que foram elaborados (1513-1515) minuciosamente por João de Castilho, em conclusão da obra iniciada por Diogo de Arruda. E não saímos dali sem encontrar a assinatura do próprio mestre que finalizou esta obra.
A primeira paragem, depois da entrada, são os principais claustros em estilo gótico, o Claustro do Cemitério, onde estão sepultados os grandes mestres da Ordem dos Templários e o Claustro da Lavagem, onde era lavada a roupa numa cisterna de pedra. Ao ouvir a explicação, lembrava-me tão bem de brincar ali em pequenina. Os meus pais iam com regularidade ao Convento a vários tipos de eventos. Na altura, não sabia bem o que os pais faziam, mas achava graça serem “amigos do convento”, portanto lá ia arrastada com a minha irmã mais nova. As reuniões costumavam ser depois da hora de fecho e, em vez de ficarmos com os pais, fugíamos, corríamos por entre os claustros labirínticos. Perdíamos-nos e chorávamos porque ficava muito escuro mas bastava olhar para cima e avistar a torre sineira principal no topo da Charola e lá nos orientávamos – “A janela fica por ali”.
Depois de visitarmos os claustros principais, avançamos para a capela principal, a Charola. Tem uma entrada própria por um arco que se abre para a “rotunda octogonal”. Isto porque é uma capela de planta centrada, com inspiração na Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém. Ou seja, o que temos na Charola é uma evocação de Jerusalém, o lugar da Ressurreição de Cristo por parte dos cavaleiros Templários. E se olharmos em volta da Charola, o que vamos ver é precisamente a representação da Paixão de Cristo e da sua Ressurreição.
Ao ouvirmos a explicação, vislumbrávamos muitos dos pormenores daquela decoração elaborada e não conseguíamos aproveitar tudo adequadamente. O sol brilhava pelas janelas mostrando o ponto central de Cristo na cruz.
Saindo da capela-mor, dirigimo-nos ao Claustro D. João III, chamado também de Claustro Principal, que é uma obra-prima mundial para a história da arquitetura. Sim, aí lembrava-me perfeitamente como era extremamente interessante subir e descer as escadas em espiral circular em cada canto. Sempre com muito cuidado porque sabíamos que a mãe não gostava das alturas – “Sancha! Se a mãe sabe que estás aí…!” – dizia para a minha irmã, a qual respondia – “Para de ser igual ao pai”. Um lugar que aparentemente me parecia tão sereno mas ao mesmo tempo tão sério, levava-nos a desconstruí-lo nas brincadeiras de reis e rainhas que fazíamos e nas corridas – “Ganha quem chegar primeiro à janela escondida” – cada uma fugia para o seu canto preferido do claustro e subia as escadinhas em espiral tentando não ficar tonta. “Janela escondida”, dizíamos, pois o Claustro Principal no seu rigor, na sua austeridade, foi feito a mando de D. João III (que lhe deve por isso o nome), correspondendo ao modelo romano da antiguidade clássica. Deste modo, contíguo à charola, este Claustro ladeia a fachada sul da nave manuelina, sendo o seu traço diferente da restante arquitetura conventual. O Convento de Cristo tem assim esta importância extraordinária para a arquitetura por combinar duas diferentes épocas. O contraste entre a obra manuelina e a obra do arquiteto Diogo de Torralva torna evidente a passagem dos tempos.
Agora, olhando com mais atenção, percebo um conjunto de aspetos que são extraordinários: a ideia de três arcos que se repetem em cada uma das faces da planta quadrada e que são intervalados por colunas; e esse tema depois repete-se no andar superior mas numa escala menor; como as colunas, as linhas horizontais e verticais são diferentes de piso para piso. E esta repetição de ritmos diferentes leva-nos a olhar para esta obra quase como se fosse uma sinfonia musical, temos uma frase base que se repete mas que vai sofrendo variações. Imaginava eu naquela altura que a minha irmã mais nova viria a tocar em orquestra neste mesmo lugar que nos é tão especial.
Saindo deste belíssimo claustro, classificado como um dos mais belos da arte renascentista europeia, voltamos a mergulhar no estilo manuelino colocando-nos de frente para a Janela do Capítulo – “cá está ela, a verdadeira” – pensava eu em pequenina.
Na fachada poente, a famosa janela manuelina que ilumina a sala do Capítulo, simboliza a árvore da vida. Representa a exaltação da intenção imperial de D. Manuel, o rei que se tomava a si próprio em governar os homens por escolha providencial de Deus. Mais uma vez, sentámo-nos para ouvir os pormenores e curiosidades sobre os enfeites de pedra surpreendentes diante desta obra magnifica (construção entre 1510-1513) do arquiteto Diogo Arruda: símbolos reais como, as duas esferas armilares, o escudo com a coroa portuguesa e por cima a cruz da ordem de cristo. E depois temos os elementos relacionados com os descobrimentos portugueses: dum lado e doutro da janela os mastros da caravela; e nesses mastros há algas, corais, nós e correntes; também encontramos elementos naturais como as alcachofras e troncos.
Depois de explorarmos muitos outros recantos, incluindo os dormitórios e os outros claustros, havia também um hospital que acabamos por não visitar... Agora seria muito útil que funcionasse! É razão para crer que muitas instituições e edifícios da Igreja desapareceram e hoje seriam uma mais valia para combater o drama que muitas pessoas vivem, não só físico e psicológico, mas também espiritual.
Acredito que poderíamos ter passado um dia inteiro no Convento, mas já estávamos bastante exaustas não só pela quantidade de informação recolhida como pelo dia que se mantinha quente. Então seguimos caminho para a aldeia de Cem Soldos, para beber uma limonada e onde a minha mãe nos esperava com um ótimo almoço.
Esta é uma das casas que me viu crescer que pertence à família desde o meu trisavô. Uma casa, em que passei os melhores momentos da minha infância e que agora, espera por mim em todas as férias, festas e encontros de família… Não há como dizer não a uma ida à casa de Cem Soldos.
Antiga casa agrícola, com uma grande vacaria, com um “passadouro” inclinado onde se punham os tabuleiros com figos a secar e onde se fazia queijo, fazia fila de pessoas para comprar leite à porta de casa. Na casa do forno, ainda fazemos pão de vez em quando mas os anos passaram e a casa passou a funcionar apenas para férias, albergando durante o ano a família (que não para de crescer) e grupos de amigos.
No telheiro do pátio, a mesa grande estava pronta para receber as minhas amigas. Para além da visita ao Convento, vieram de Lisboa de propósito para conhecer e conviver na casa que sabem que me diz muito. Divididas nas conversas à volta da mesa, na ajuda na cozinha, na visita à casa ou no folhear do álbum de fotografias, recordo-me com alegria os momentos passados com os primos e a avó Dida nos verões quentes em Cem Soldos.
Fazia-se tarde, e as minhas amigas partiam rumo às suas casas. Como me senti bem em partilhar a memória de dois lugares que me viram crescer.
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