Começamos hoje uma série de artigos sobre a peste na literatura clássica. Pode parecer um tema não grato, até porque, durante estes últimos dias, não temos quase ouvido falar de outra coisa, por pouco que liguemos o televisor. No entanto, longe de ser mórbida, esta escolha será uma ocasião para perceber como se construiu a imagem da peste no imaginário ocidental, ao mesmo tempo que lemos bons textos literários e refletimos sobre a situação pela qual estamos a passar. Aqui e ali, também haverá a possibilidade de meditar sobre o comportamento humano e as relações sociais em tempo de pandemia. Não deixes de comentar e partilhar as tuas opiniões sobre o assunto!
Para entrarmos em cheio no tema, escolhi alguns versos da primeira obra literária da literatura grega, um texto fundador por excelência: a Ilíada. Se calhar, alguns de vocês até já leram partes desta epopeia. (Se ainda não leram, têm agora muito tempo para fazê-lo…) Mas, melhor ou pior, todos nós sabemos que a Ilíada se passa no último ano da Guerra de Troia e também temos uma ideia de que o culpado de tudo aquilo foi Aquiles e a sua “cólera mortífera”. Perdão, o culpado foi mesmo Páris e a sua paixão avassaladora por Helena, que, diga-se de passagem, também tinha algumas culpas no cartório - ou não fosse ela uma mulher casada que se deixou seduzir. Contudo, no início do poema, Homero troca-nos as voltas e coloca todos os acontecimentos daquele último ano de guerra sob a influência da cólera de Aquiles. Uma cólera que, para sermos sinceros, tinha pouca razão de ser, porque casos como o dele têm-se resolvido ao longo da história com muito menos azedume e mais bom senso. O que estava em causa era o seguinte: Crises, sacerdote de Apolo, sofria com o facto de Agamémnon, soberano dos Gregos, ter raptado a sua filha, Criseida. Por isso, tentava por todos os meios recuperá-la, o que consegue a custo. Contudo, Agamémnon acha que não deve ser o único a fazer cedências e obriga Aquiles a abrir igualmente mão de Briseida, a sua amada cativa. Aqui é que a porca torce o rabo: o valentão do Aquiles amua e vai ser complicado pô-lo de novo a combater.
No meio de tudo isto, o interessante é que Homero começa a narração da sua obra com uma peste. (Daí o título deste post.) Não é lá maneira muito luminosa de começar uma epopeia, ainda por cima quando o deus que lançou essa mesma peste sobre o povo era Apolo, deus tradicionalmente associado à luz. Contudo, esta escolha é possivelmente um símbolo do mal que se abate sobre todo um povo, se os seus dirigentes não procurarem o bem-comum, ao ponto de deitarem a perder tudo, precisamente quando tudo se encaminha para a vitória. Ainda hoje acontece...
Mas comecemos por ver como Homero descreve a reação de Crises, depois que Agamémnon, o chefe da expedição grega, se recusa, num primeiro momento, a entregar-lhe a filha, Criseida (I, vv. 33-36, 42):
Amedrontou-se o ancião e obedeceu ao que fora dito.
Caminhou em silêncio ao longo da praia do mar marulhante.
E depois de se ter afastado para longe, rezou o ancião
ao soberano Apolo, que Leto de belos cabelos deu à luz:
"Que paguem com tuas setas os Dânaos as minhas lágrimas.”
Ao lermos estes versos, podemos imaginar o rosto de Crises, um ancião, cheio de medo e despeito. O medo que sente por ter sido silenciado por Agamémnon reflete-se na taciturnidade que se apodera dele, ao passo que a vontade de vingança amplifica-se com o som das ondas que rebentam na costa. A caminhada pela praia é uma imagem do lento remoer do ressentimento no coração de Crises, ressentimento que não encontra maneira de exteriorizar-se. Mas não esqueçamos que Crises era sacerdote de Apolo, pelo que o deus teria de defendê-lo. Por isso, o sacerdote vocifera aquela súplica terrível: “Que paguem com tuas setas os Dânaos (os Gregos) as minhas lágrimas.” Percebemos imediatamente que, para o poeta, a peste não tem nenhuma causa natural, sendo exclusivamente vista como castigo divino por uma afronta. No entanto, se não soubéssemos que o resultado desta súplica seria uma peste medonha, a verdade é que, até este momento, não temos nenhum indício sobre o que estas “setas” possam efetivamente ser. Poderia muito bem ser uma retaliação militar ou qualquer outro fenómeno mais ou menos sobrenatural. Porém, é curioso pensar que esta associação entre “setas” e “pestilência” se tornou tão duradoura ao ponto de São Sebastião, que a iconografia nos representa martirizado debaixo de uma chuva de setas, ter sido eleito como o patrono celeste contra a peste.
Se continuarmos a ler o texto, vemos (ou melhor, ouvimos) como aparece o deus Apolo em pessoa para vingar o seu sacerdote e fustigar impiedosamente os Gregos (vv. 43-47).
Assim disse, orando; e ouviu-o Febo Apolo.
Desceu do Olimpo, com o coração agitado de ira.
Nos ombros trazia o arco e a aljava duplamente coberta;
aos ombros do deus irado as setas chocalhavam
à medida que avançava. E chegou como chega a noite.
Reparem como os sentimentos do deus são iguais aos do seu sacerdote: «com o coração agitado de ira». A sua descrição física coincide com a tradição que o descreve como arqueiro exímio. É pavoroso imaginar um deus que desce dos céus e que atira setas com uma destreza perfeita, não errando o alvo. Atira-as mesmo antes de o vermos apontar e atirar. Ficamos apavorados só de ouvi-las chocalhar na sua aljava e cortar o ar, silvando impiedosamente. Talvez resida aqui a explicação da associação entre “setas” e “pestilência”, na medida em que a causa da pestilência não se vê – e por isso é que é tão temida –, mas fere o doente de maneira profunda e inescapável. Mais uma vez, sintam o paradoxo do deus Apolo estar associado à noite: «chegou como chega a noite». O que acham que esta noite exterior pode sugerir? Quanto a mim, vejo nela uma imagem da confusão geral no acampamento grego e da inatividade inicial dos chefes, que são incapazes de propor prontamente medidas criativas e flexíveis para resolver a crise.
Depois sentou-se à distância das naus e disparou uma seta:
terrível foi o som produzido pelo arco de prata.
Primeiro atingiu as mulas e os rápidos cães;
mas depois disparou as setas contra os homens.
As piras dos homens ardiam continuamente.
Durante nove dias contra o exército voaram os disparos do deus.
Ao décimo dia, Aquiles convocou a hoste para a assembleia… (vv. 48-54)
A imagem da propagação da doença como uma chuva de setas é ainda levada a outro nível, quando vemos a sequência dos seres afetados: primeiro as mulas, depois os cães (que, embora rápidos, não conseguem escapar) e só no final os homens. Há aqui quase uma noção científica de propagação da doença e dos animais que a podem transportar. O cenário é apocalíptico. É óbvio que os “nove dias” não são anódinos: são os anos da guerra que já passaram e que foram, também eles, uma verdadeira peste.
De repente, aparece Aquiles, que neste momento é o representante literário do político que, no meio do pânico, tem o sangue frio necessário para criar um comité de emergência, propor medidas e exigir sacrifícios, depois do choque inicial e da apatia generalizada. A noção de bem-comum talvez não lhe seja estranha, mas nós sabemos, pelo resto da história, que ele próprio só a custo participará neste esforço coletivo. Segue-se a proposta de devolver Criseida ao pai, depois de Calcas, o adivinho, ter explicado que a causa do flagelo era precisamente o cativeiro da donzela.
Querem saber se tudo se resolveu depois de Agamémnon ter acedido (a ferros!!!) em entregar a menina dos seus olhos? Leiam agora o desenlace da peste para sabê-lo (vv. 446-446, 450, 453-457)!
Assim dizendo, entregou-a nos braços do pai, que recebeu
Com regozijo a filha amada…
Entre eles levantou Crises as mãos e rezou em voz alta:
“… Tal como antes deste ouvidos à minha prece,
E para me honrares fustigaste a hoste dos Aqueus,
Também agora faz que se cumpra isto que te peço:
Afasta dos Dânaos a pestilência repugnante.”
Assim disse, orando; e ouviu-o Febo Apolo.
Contaram o número de versos que separam o início da peste e o seu fim? São ainda uns bons 400 versos. É muito significativo que assim seja. Não serve apenas para termos uma ideia de como a situação custou psicologicamente a passar, apesar de ter durado apenas alguns dias. (Depois de estarmos em casa há pouco mais de duas semanas, parece que já passou uma eternidade...) Todo este intervalo de versos permite também que compreendamos que a solução para a pestilência não estava só na entrega de Criseida. De facto, segundo o oráculo, bastaria entregar Criseida para restabelecer a situação; todavia, Homero preferiu colocar o fim da peste só depois que Aquiles, mau grado seu, também entregou Briseida. Podemos interpretar esta escolha como uma piscadela de olho. Talvez Homero quisesse sugerir que a verdadeira solução dos problemas dos Gregos passava por um comum acordo entre os chefes da expedição e por cedências de todos. Não bastava que Agamémnon, o chefe dos chefes, fizesse a sua parte; todos tinham de estar envolvidos, nem que fosse a nível moral. Sem dúvida, esta é uma mensagem mais do que atual na nossa situação corrente! Antes mesmo de acabar, não resisto a sublinhar, a título de brincadeira, que o nome do sacerdote "Crises" indicia muito que ele estava mesmo fadado para se ver envolvido num imbróglio destes. Mas, honra seja feita à etimologia grega, "Crises" tem que ver com "ouro" e não "crise". Porém, quem sabe?, talvez as duas realidades estejam mais vezes relacionadas do que convém!...
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A tradução da Ilíada é a do Prof. Frederico Lourenço, que anda a dar aulas de Latim on-line. Deem uma olhadela em Latim do zero.
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