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Foto do escritormarcoshelena

Uma série da autoria do Prof. Giovanni Fighera


Este artigo foi originalmente publicado em simultâneo no quotidiano on-line La Nuova bussola quotidiana (https://lanuovabq.it/it/interesse-un-amore-comunicato-cosi-nasce-lo-studio) e no blog do autor La ragione del cuore (https://www.lanuovabq.it/it/interesse-un-amore-comunicato-cosi-nasce-lo-studio), no dia 8 de abril de 2018. A tradução portuguesa é aqui publicada com a autorização das partes interessadas, a quem agradecemos a generosidade.


Interesse, um amor comunicado: assim nasce o estudo


Se queremos motivar de verdade um jovem para o estudo do Latim, devemos suscitar nele uma paixão, devemos motivá-lo para um «interesse» presente. O jovem poderá, assim, verificar que o que está a estudar tem a ver com a sua pessoa. Como acontece com a rapariga por quem nos apaixonamos…


Ludwig Passini,

A Aula de Latim (1869)


Se queremos motivar de verdade um jovem para o estudo do Latim, devemos suscitar nele uma paixão, devemos motivá-lo para um «interesse» presente. O jovem poderá, assim, verificar que o que está a estudar tem a ver com a sua pessoa. De outra forma, o esforço que fazemos para levá-lo a aplicar-se será, provavelmente, pouco frutífero. Leopardi observava no Zibaldone que «propor a uma criança (por exemplo nos estudos) uma finalidade longínqua (como o sucesso e as vantagens que obterá na maturidade da vida ou na velhice, ou mesmo apenas na juventude) é absolutamente inútil para motivá-la (pelo que é sumamente certo e útil atrair a criança para o estudo, propondo-lhe resultados e vantagens que ela possa e deva conseguir rapidamente, e quase de um dia para o outro – o que é como aproximar dos seus olhos a finalidade do sucesso e da utilidade dos estudos…)» .

A tendência para protelar a felicidade para o futuro ao ponto de conceber o desejo de obter a felicidade através da descendência acentua-se sempre mais à medida que o homem cresce e se torna adulto e já está praticamente assente na criança que pensa sempre no presente e apenas consegue conceber o futuro como o instante imediatamente seguinte.

E agora, perguntamos, como é possível incentivar o aluno com uma recompensa, com um prémio próximo, imediato, não projetado num futuro longínquo? Será que a recompensa no presente não pode ser outra coisa para além da nota, por boa ou má que seja? Não há outra coisa que possa incentivá-lo e estimulá-lo?

Vamos tentar responder a esta pergunta precisamente com a ajuda do Latim. Partamos do significado destas duas palavras, «estudo» e «interesse». Cada palavra esconde sempre uma história, conta causas, explica a vida. «Estudo» (do termo latino studium) indica a paixão, o zelo, a aplicação. O termo «interesse» (do verbo latino intersum, ou seja, «estou no meio», «participo», que na forma impessoal interest significa «interessa») indica que a minha pessoa participa, intervém, tem a ver com a atividade que está a desenvolver. O étimo da palavra «interesse» desfaz um dos lugares-comuns da escola e do estudo, a saber: o facto de que o interesse surge primeiro que o estudo (facto por vezes verdadeiro). Contudo, na maior parte dos casos, a paixão ou o interesse nasce de uma participação, de um envolvimento, do facto de que eu me ponho a caminho.

Agora, vamos tentar responder à pergunta «porquê estudar?» ou, melhor, «quando acontece que um aluno estuda?» (isto é, no sentido profundo da expressão, enfrenta a aventura fascinante do conhecimento).

Em primeiro lugar, se o aluno descobre amor e paixão no professor, poderá não compreender no início, mas fica preso pelo fascínio da beleza que o professor encontrou e que também procura comunicar aos alunos. Este fascínio e esta beleza são o método, o bom caminho, para que o jovem estude, consiga bons resultados. Ouvi pais impressionados pelo facto de que os seus filhos tivessem falado ao jantar da Divina Comédia, a tivessem utilizado para debater e para explicar a vida. Como da Divina Comédia, poderemos dizer o mesmo de filmes, de escritores, de filósofos e muito mais. A beleza impressiona. Cada disciplina tem já em si tudo quanto é necessário para que possa conquistar o jovem. O docente que é apaixonado pela sua disciplina sabe bem que não deve inventar estratégias particulares, mas apenas contar e explicar com o amor que tem no coração. Como quando alguém está apaixonado por uma senhora, não deve inventar nada. Se a apresentar a outras pessoas, apresentá-la-á com todo o entusiasmo e amor que sente por ela. Da aventura de um encontro com um aspeto da realidade nasce o interesse no jovem.

Em segundo lugar, na aventura do conhecimento é fundamental que se crie uma ligação afetiva entre o professor e o aluno. A escola é muitas vezes vista pelos jovens como uma prisão, porque é entendida como asséptica, anónima. O professor aparece assim apenas como um mediador de conhecimentos.

Numa carta ao irmão Theo, depois de ter descrito a própria condição existencial comparando-a à de um passarinho numa gaiola, Van Gogh afirma: «Sabes o que faz desaparecer esta prisão? É um afeto profundo, sério. Ser amigos, ser irmãos, amar abre a prisão por poder soberano, por graça poderosa. Mas quem não consegue tê-lo permanece fechado na morte. Mas onde renasce a simpatia, aí renasce também a vida.». No Principezinho, Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944) apresenta uma raposa que, depois de ser domesticada pelo rapaz, começará a apreciar os campos dourados de trigo, porque lhe lembram a cor dos cabelos do príncipe. Quando ficamos impressionados com alguém e começamos a querer-lhe bem, descobrimos então uma parte da realidade até ao momento desconhecida. A ligação torna-se método, caminho, chave de acesso, janela sobre a realidade. Num certo sentido, para o homem tudo o que não é amigo e não é conhecido é como se fosse inimigo, não valorizado, inútil para a vida e para o crescimento. «Só se conhecem as coisas que se domesticam», mas para domesticar é preciso tempo. Infelizmente, «os homens já não têm tempo para conhecer nada. Compram dos vendedores as coisas já feitas. Mas, como não existem vendedores de amigos, os homens já não têm amigos».

A afetividade pode sanar a fratura entre uma vontade frágil e doente e uma razão que, se utilizada sem incrustações, sabe discerne o bem do mal. A responsabilidade do jovem torna-se assim como uma resposta a uma realidade encontrada, como um movimento do próprio «eu» que se põe em ação, sai de si e vai em direção ao outro. Neste movimento de saída de si, o «eu» descobre a dinâmica fundamental da pessoa como relação estrutural com o outro. O que ganho com o estudo? A cor dos campos de trigo. Como na amizade, ganho e descubro um pedaço de realidade, ganho e descubro um pedaço de mim.

Em terceiro lugar, para esta aventura do conhecimento é preciso alguém que nos acompanhe, um mestre, que nos leve pela mão, que nos introduza no percurso do encontro com a disciplina. No canto III do Inferno, Dante está novamente assustado em frente da epígrafe em cima da porta de acesso. Então Vergílio leva-o pela mão e coloca-o dentro das «secretas coisas» (a realidade a descobrir) «com ledo vulto» (com esperança e alegria).

Acontece a mesma coisa quando vamos ao teatro para assistir pela primeira vez à encenação de uma ópera lírica. Precisamos de alguém que nos introduza nesta arte, que nos aproxime do espetáculo. Acontece assim também com a música, com a literatura, com a filosofia, etc. É precisa a presença de uma pessoa que nos faça compreender que vale a pena abrir uma janela sobre aquela parte de realidade ainda desconhecida.

Foto do escritormarcoshelena

Este artigo foi originalmente publicado em simultâneo no quotidiano on-line La Nuova bussola quotidiana (https://lanuovabq.it/it/primum-la-realta-il-viaggio-nel-latino-che-non-ti-aspetti) e no blog do autor La ragione del cuore (https://www.giovannifighera.it/latino-serve-1-primum-la-realta-viaggio-nel-latino-non-ti-aspetti/), no dia 2 de abril de 2018. A tradução portuguesa é aqui publicada com a autorização das partes interessadas, a quem agradecemos a generosidade.

Esta série de artigos do Prof. Giovanni Fighera (em italiano "Il Latino serve a tutti") vai mostrar-te um lado do Latim que, tantas vezes, não podemos explorar nas aulas. É uma autêntica viagem pela literatura latina! Neste primeiro episódios, há algumas referências à situação do Latim no ensino italiano, mas as considerações do autor, mutatis mutandis, também se adequam bem ao caso português. Boa leitura!


“Primum” a realidade: a viagem pelo Latim de que não estavas à espera

Da autoria do Prof. Giovanni Fighera

Os alunos do Ensino Básico estão cada vez mais assustados com o Latim e preferem evitá-lo, com medo de não conseguirem passar à disciplina ou para escaparem a esse esforço. Pelo contrário, o conhecimento do Latim permite apreciar melhor muitos aspetos da realidade. Mas quais? Descubramo-los em conjunto nesta viagem em episódios!



Pierre-Narcisse Guérin,

Eneias descreve a ruína de Troia a Dido (1815)

Nas sessões de esclarecimento sobre as escolhas curriculares organizadas pelas escolas, muitos pais perguntam se existe uma diferença assim tão grande entre uma escola em que se estuda Latim e outra em que a disciplina não consta do plano de estudos. As escolhas das famílias e dos alunos são cada vez mais orientadas para percursos escolares sem Latim, com a convicção de que estudar ou não esta disciplina faz pouca diferença, considerando que as outras disciplinas são quase as mesmas em todo o lado. É este o raciocínio da maioria: se em dez disciplinas nove são iguais, a diferença entre um plano de estudos com Latim e outro sem será quase inexistente.

Na realidade, acabar com o estudo do Latim numa escola significa simplesmente substituir uma disciplina por outra? Ou será que o Latim não é uma simples disciplina, mas uma luz que ilumina e permite ver tudo melhor? Não será como se estivéssemos numa casa sem luz suficiente e nos fosse dada uma lâmpada que nos permitisse movermo-nos com mais destreza?

Os alunos do Ensino Básico estão cada vez mais assustados com o Latim e preferem evitar a disciplina, talvez com medo de não conseguirem passar ou, talvez, para não terem demasiado trabalho.

Certamente, não defendo um currículo escolar igual para todos, nem muito menos o estudo do Latim em todos os casos. Estou firmemente convencido de que se deve ajudar os alunos a perceber as propensões, as paixões, os talentos e as capacidades que têm. A escola tem a função de contribuir para a formação da pessoa, para construir uma dimensão cultural, para levantar corajosamente questões sobre si próprio, sobre a vida e sobre a realidade. Se um aluno tem uma clara propensão para disciplinas práticas, se tem a firme convicção de que quer ser carpinteiro no futuro, a sua família deverá, decididamente, levar em consideração a hipótese de que ele siga um percurso de formação profissional que o prepare para esse trabalho.

O meu discurso dirige-se, pelo contrário, a todos aqueles alunos que têm uma clara propensão para o estudo, que desejam adquirir uma cultura geral para depois prosseguirem os estudos a seguir ao Liceu e estão, ao mesmo tempo, convencidos de que uma escola com ou sem Latim vale o mesmo. A todos estes alunos sugiro concretamente um critério para as suas escolhas: nunca escolham pelo “menos”, mas sempre pelo “mais”. Vou explicar-me melhor. Se tiverem de escolher um percurso de estudos, façam-no porque reconhecem nesse percurso uma mais-valia para a vossa pessoa, para as vossas propensões, para a vossa formação cultural, não apenas porque vos parece mais fácil ou acarreta um menor dispêndio de energias. Poupar energias, não suportar esforços e não se habituar aos sacrifícios são modalidades que não premeiam, não formam, não educam, ou seja, não fazem crescer a pessoa.

Para que serve o Latim? Será assim tão opcional o seu estudo? Digo já que estou firmemente convencido de que qualquer pessoa que tenha tomado a sério o estudo do Latim não tem dúvidas sobre a sua utilidade. Estou outro tanto convencido de que estudá-lo mal não serve para nada, mas se o tratamos com seriedade serve para tudo, porque ilumina com uma luz nova todos os âmbitos do saber. Num certo sentido, para o homem, tudo o que não é amigo e não é conhecido é como se fosse inimigo, não valorizado, inútil para a vida e para o crescimento.

O conhecimento do Latim permite apreciar melhor muitos aspetos da realidade. Mas quais? Só o estudo e a experiência podem prová-lo a cada um. Antecipo, porém, que é preciso ter coragem de trabalhar, de empenhar bastante tempo (como a raposa do Principezinho), mesmo quando não se compreendem plenamente as razões para esse esforço. É preciso ter coragem de despender tempo para aprender bem a disciplina.

Sem dúvida, a aprendizagem de uma disciplina não é simplesmente um instrumento para adquirir aquela competência que deve ser adquirida. A nossa escola tornou-se, demasiadas vezes, uma escola das competências (do saber fazer), frequentemente desligadas da cultura. As antologias, por vezes, propõem a leitura de um poema para adquirir uma competência, para aprender um pormenor de estilo ou uma figura retórica ou qualquer coisa parecida. Isto é uma operação violenta que se arrisca a desenamorar os jovens da leitura, da poesia, da narrativa.

Quando se está enamorado por uma disciplina, quando se a ama, percebe-se que é uma operação absurda limitar o seu estudo para assegurar aos alunos alguns "objetivos específicos". Compreende-se que a coisa mais bela é que outra pessoa possa ficar fascinada, como nós próprios ficámos, por aquela beleza. É este fascínio, esta paixão, este entusiasmo por qualquer coisa que nos precedeu, que é maior do que nós, e que, de certo modo, deixou em nós a fonte que pode levar um jovem a estudar Latim.

Nesta viagem gostaria de esclarecer os motivos pelos quais vale absolutamente a pena apaixonar-se pelo Latim. Desde sempre, os seus mais aguerridos defensores apregoaram o motivo de que o estudo de uma língua antiga e morta ensina a raciocinar e desenvolve o sentido lógico. Porque não aprender a raciocinar com outros métodos menos cansativos e mais atraentes? As palavras cruzadas também podem ensinar a raciocinar, a Filosofia também, uma demonstração matemática também, um texto em prosa ou um poema também, um quadro, uma música. Afinal, porquê cansar-se tanto em 2020 à volta do Latim?

Para descobrires a resposta a esta questão, terás de seguir os outros artigos desta série do Prof. Giovanni Fighera. Fica atento à sua publicação!

António Arruda

E no último dia desta semana da ética deixo o conto escrito pela Catarina Rocha, aluna do 12.º ano, no âmbito do projecto de final de Ética e um questionário sobre Amizade criado pelo Tomás Pargana, Francisco Teiga Vieira, João Afra Rosa, Salvador Norton de Matos e Lourenço Vaz Tomé.


Junípero

Catarina Rocha


Era uma vez uma grande e majestosa floresta pintada em tons de oiro, folhas rubras, e árvores altas. Uma brisa suave passeava no ar e acordava as flores, os musgos e as ervinhas que ainda dormiam. Ao longe, a doce aurora esfumava um tom de cinza no céu e iluminava um pequeno riacho de águas límpidas e frias.

Por aqui passeava, todas as manhãs, um jovem frade, Junípero. Olhava o azul das ervas que cobriam a terra, sorria para as flores e acompanhava a melodia dos passarinhos. Era costume andar com a sua longa túnica acastanhada, simples, velha e remendada, que a todos fazia confusão, porque o sol já aquecia a floresta e abria o perfume que vinha da terra. Às vezes passavam carreiras, alinhadas e direitas, de formigas que marchavam, atarefadas, até ao formigueiro, pontinhos pretos entre o verde viçoso que medrava do chão. Olhava, admirava e contemplava o mundo que parecia ter sido pintado, com detalhes tão bonitos. Junípero, certo dia, enquanto explorava os mistérios desta floresta, avistou uma clareira, grande e ampla onde as ervinhas baloiçavam ao som da brisa e calor da manhã. Escondidos numa sombra de um alto sobreiro, estavam dois rapazitos, resguardados do sol por esta árvore secular. Ao verem o bondoso frade que admirava as nuvens, naquele dia, leves e quase transparentes, encheram-se de curiosidade. Viram-se invadidos por uma admiração quase mística que rasgava, em suas carinhas, um grande sorriso.

“—Para que servirá aquela capa?” perguntara o primeiro.

O segundo, sem dar resposta, levantou-se, num ímpeto de coragem e puro desafio à natureza tímida de uma criança, e agarrou-se ao hábito do frade. Junípero, que ainda refletia acerca do céu, deu um passo em frente e, sem saber que carregava um rapaz nas suas saias, quase tropeçou numa rocha que há pouco admirara. Quando recuperou o equilíbrio, ouviu o choro do menino que se agarrava aos remendos, arrependido de ter sido tão malvadamente curioso. O frade olhou para a criança e sorriu, “como é boa a curiosidade e encanto das crianças” pensou. Então, deu-lhe uma festa no rosto e um cordão que trazia ao pescoço, acenou ao outro que procurara abrigo por entre os grandes ramos da árvore anciã e prosseguiu o seu passeio.

O que não sabia é que naquela manhã um homem de cabelos negros, volumosos e brilhantes, de face queimada pelo sol e olhos traiçoeiros, avisara um tirano, que se instalara na floresta, de um perigo eminente. Recebera um aviso de um anjo, confessava num tom de contentamento por ter todos a ouvi-lo. Ele alertara-o para a chegada de um homem de vestes rasgadas e instrumentos perigosos que prometia pegar fogo aos tons quentes da floresta. O tirano ouvia atentamente as confissões de uma voz árida e sincera, por trás da sua pesada armadura. O grande problema é que quando alguém se preocupa em demasia consigo mesmo, vai perdendo, gradualmente, a sensibilidade e percepção da sinceridade, do bem e do mal. Ao tirano, tanto lhe agradava ter alguém preocupado com ele e tanto o preocupava que a alguém não tivesse agradado que, naquela manhã, não notara que o diabo se mascarara para instalar o terror e desordem naquela pequena comunidade. E porque um mal só germina de outro, as inseguranças semeadas pelo diabo cresciam vigorosamente no tirano que, enquanto olhava o crepúsculo dourado no céu, decidira apagar quaisquer ameaças capazes de queimar o seu poder. Então, no dia seguinte, numa manhã pálida e carregada, somente adoçada pela brisa tingida de orvalho, o tirano exigiu que todos se dirigissem ao centro de uma clareira, não tão bela quanto a primeira, mais pequena, seca e crócea, onde se tinham instalado, não há muito tempo.

A tirania tem destas coisas, bastou este homem pequeno de nariz bolboso, traços carregados e olhos raivosos agarrar a única oportunidade que tivera de poder, para sujeitar toda uma comunidade a trabalhos forçados. Tinham de servir a um homem que tinha muito poder e muitas vezes não era justo, pelo que o medo de ser devorado por aqueles a quem impunha uma vida miserável, obrigava-o a infligir-lhes severos castigos e ameaças ruidosas. Embora estivesse protegido por uma grande e pesada armadura de ferro, o tirano sabia que só conseguiria continuar a reivindicar a sua posição enquanto todos o temessem. Por isso, vivia sempre numa constante incerteza e estado de insegurança. “Envenenarão as minhas refeições?”, “ Matar-me-ão enquanto durmo?” eram preocupações suas recorrentes. O preço que pagara pela promessa do poder revelara-se muito elevado: já só tinha os montes e ervinhas a quem ensinar as dores de um peito solitário.

Nessa manhã, Junípero avistou, ao longe, a clareira apagada que aos poucos ia ganhando vigor com o movimento de corpos apressados, pontinhos longínquos com carga às costas. Queria saber quem eram aquelas pessoas que tão cedo acordaram para trabalhar. Então, como teria de caminhar sobre uma trilha íngreme, com numerosa rochas afiadas, decidiu tirar de uma bolsa um instrumento para apertar as sandálias. Como o seu hábito estava rasgado e não queria perder a bolsa, levou-a na mão, continuando o caminho.

Aos poucos, entre os raios de sol e vento abafado, as figurinhas pareciam ganhar forma, corpo, função, nome. O frade, à medida que se ia aproximando, sentia-se inundado por olhares intensos e desconfiados, expressões hostis e burburinhos que arrastavam multidões a seu redor. Rapidamente, sem se aperceber, estava a ser empurrado, acusado, pontapeado, insultado e ameaçado por aldeões que rosnavam querer proteger o tirano Nicolau. De repente, dois guardas, altos e imponentes, exigiram silêncio. O clamor que invadia a clareira de imediato se extinguiu. Vestiam malhas grossas de aço e carregavam, cada um, um escudo prateado e brilhante às costas. Junípero estava caído no chão e não tardou muito até que fosse levantado, bruscamente, para que o tirano o confrontasse.

Sem qualquer tipo de misericórdia nem compaixão, foi-lhe atada uma corda em torno das mãos e arrastado para junto dos aposentos do tirano. O pobre frade, simples, inocente e de bom coração ainda não reclamara a sua inocência. Aguardava, pacientemente, o seu desfecho. A multidão seguia-o euforicamente. No silêncio, pouco tempo depois, começaram a borbulhar cânticos de curiosidade, rapidamente abafados pelo passos lentos e pesados do tirano:

— O que atentais sobre mim? – Interrogou o tirano num tom austero.

— Perdoa-me porque errei, mas nada atentei sobre ti. – retorquiu o frade com doçura.

Esta resposta confundiu todos.

— Por que é que trazeis instrumentos para queimar a nossa clareira?

— Não tinha quaisquer intenções de tal, mas, como todos aqui presentes, já errei muito. -Junípero mostrava-se calmo e sereno, contribuindo para a exaltação de Nicolau.

O tirano, de repente, encontrava-se numa situação delicada. Por um lado temia estar a julgar um inocente, por outro, o seu espírito egoísta e soberbo não aguentava pôr em causa o seu poder, independentemente de quem magoasse. E como ouvir a nossa voz em demasia pode ser enganador, assim a voz do tirano declarou:

— CULPADO! Levai-o daqui e castigai-o!

Prontamente os guardas, mais uma vez, arrastaram o pobre Junípero para que fosse castigado em praça pública. Certo é que nada tinha feito, mas a sua humildade e beleza de espírito impediram-no de se expressar. Tudo pareceu passar tão rápido que só por um instante conseguiu vislumbrar, ao longe, as águas frias que corriam e as folhas doiradas que dançavam. Então, fechou os olhos e pensou “ Que bonito é o mundo, mas o homem esquece-se dele”.

Entre clamores e implorações, revoltas e aplausos, uma voz desesperada emergiu. Era um padre, velho amigo de Junípero e que fora chamado, num ato de misericórdia, por um pobre aldeão. Correu para junto do tirano e jurou a inocência de Junípero. Deu-lho a conhecer como um dos mais conhecidos e bondosos frades. Naquele instante o tirano não sabia o que fazer. Como não queria assumir os seus erros, tomou uma tocha acesa, incandescente e atiçou fogo à clareira, outrora pálida.

A reação ao fogo foi imediata e antes de impedirem a fuga dos aldeões, muitos conseguiram escapar, incluindo Junípero. No entanto, a floresta quase encantada, iluminada por uma brisa fresca e suave esfumava, agora, em tons negros e assustadores, marcada, para sempre, pela maldade do tirano. Todavia a beleza da bondade corria, ainda, nas águas frescas e vigorosas, doiradas pelas folhas que lá decidiram descansar.

 


Mais São Tomás
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