E no último dia desta semana da ética deixo o conto escrito pela Catarina Rocha, aluna do 12.º ano, no âmbito do projecto de final de Ética e um questionário sobre Amizade criado pelo Tomás Pargana, Francisco Teiga Vieira, João Afra Rosa, Salvador Norton de Matos e Lourenço Vaz Tomé.
Junípero
Catarina Rocha
Era uma vez uma grande e majestosa floresta pintada em tons de oiro, folhas rubras, e árvores altas. Uma brisa suave passeava no ar e acordava as flores, os musgos e as ervinhas que ainda dormiam. Ao longe, a doce aurora esfumava um tom de cinza no céu e iluminava um pequeno riacho de águas límpidas e frias.
Por aqui passeava, todas as manhãs, um jovem frade, Junípero. Olhava o azul das ervas que cobriam a terra, sorria para as flores e acompanhava a melodia dos passarinhos. Era costume andar com a sua longa túnica acastanhada, simples, velha e remendada, que a todos fazia confusão, porque o sol já aquecia a floresta e abria o perfume que vinha da terra. Às vezes passavam carreiras, alinhadas e direitas, de formigas que marchavam, atarefadas, até ao formigueiro, pontinhos pretos entre o verde viçoso que medrava do chão. Olhava, admirava e contemplava o mundo que parecia ter sido pintado, com detalhes tão bonitos. Junípero, certo dia, enquanto explorava os mistérios desta floresta, avistou uma clareira, grande e ampla onde as ervinhas baloiçavam ao som da brisa e calor da manhã. Escondidos numa sombra de um alto sobreiro, estavam dois rapazitos, resguardados do sol por esta árvore secular. Ao verem o bondoso frade que admirava as nuvens, naquele dia, leves e quase transparentes, encheram-se de curiosidade. Viram-se invadidos por uma admiração quase mística que rasgava, em suas carinhas, um grande sorriso.
“—Para que servirá aquela capa?” perguntara o primeiro.
O segundo, sem dar resposta, levantou-se, num ímpeto de coragem e puro desafio à natureza tímida de uma criança, e agarrou-se ao hábito do frade. Junípero, que ainda refletia acerca do céu, deu um passo em frente e, sem saber que carregava um rapaz nas suas saias, quase tropeçou numa rocha que há pouco admirara. Quando recuperou o equilíbrio, ouviu o choro do menino que se agarrava aos remendos, arrependido de ter sido tão malvadamente curioso. O frade olhou para a criança e sorriu, “como é boa a curiosidade e encanto das crianças” pensou. Então, deu-lhe uma festa no rosto e um cordão que trazia ao pescoço, acenou ao outro que procurara abrigo por entre os grandes ramos da árvore anciã e prosseguiu o seu passeio.
O que não sabia é que naquela manhã um homem de cabelos negros, volumosos e brilhantes, de face queimada pelo sol e olhos traiçoeiros, avisara um tirano, que se instalara na floresta, de um perigo eminente. Recebera um aviso de um anjo, confessava num tom de contentamento por ter todos a ouvi-lo. Ele alertara-o para a chegada de um homem de vestes rasgadas e instrumentos perigosos que prometia pegar fogo aos tons quentes da floresta. O tirano ouvia atentamente as confissões de uma voz árida e sincera, por trás da sua pesada armadura. O grande problema é que quando alguém se preocupa em demasia consigo mesmo, vai perdendo, gradualmente, a sensibilidade e percepção da sinceridade, do bem e do mal. Ao tirano, tanto lhe agradava ter alguém preocupado com ele e tanto o preocupava que a alguém não tivesse agradado que, naquela manhã, não notara que o diabo se mascarara para instalar o terror e desordem naquela pequena comunidade. E porque um mal só germina de outro, as inseguranças semeadas pelo diabo cresciam vigorosamente no tirano que, enquanto olhava o crepúsculo dourado no céu, decidira apagar quaisquer ameaças capazes de queimar o seu poder. Então, no dia seguinte, numa manhã pálida e carregada, somente adoçada pela brisa tingida de orvalho, o tirano exigiu que todos se dirigissem ao centro de uma clareira, não tão bela quanto a primeira, mais pequena, seca e crócea, onde se tinham instalado, não há muito tempo.
A tirania tem destas coisas, bastou este homem pequeno de nariz bolboso, traços carregados e olhos raivosos agarrar a única oportunidade que tivera de poder, para sujeitar toda uma comunidade a trabalhos forçados. Tinham de servir a um homem que tinha muito poder e muitas vezes não era justo, pelo que o medo de ser devorado por aqueles a quem impunha uma vida miserável, obrigava-o a infligir-lhes severos castigos e ameaças ruidosas. Embora estivesse protegido por uma grande e pesada armadura de ferro, o tirano sabia que só conseguiria continuar a reivindicar a sua posição enquanto todos o temessem. Por isso, vivia sempre numa constante incerteza e estado de insegurança. “Envenenarão as minhas refeições?”, “ Matar-me-ão enquanto durmo?” eram preocupações suas recorrentes. O preço que pagara pela promessa do poder revelara-se muito elevado: já só tinha os montes e ervinhas a quem ensinar as dores de um peito solitário.
Nessa manhã, Junípero avistou, ao longe, a clareira apagada que aos poucos ia ganhando vigor com o movimento de corpos apressados, pontinhos longínquos com carga às costas. Queria saber quem eram aquelas pessoas que tão cedo acordaram para trabalhar. Então, como teria de caminhar sobre uma trilha íngreme, com numerosa rochas afiadas, decidiu tirar de uma bolsa um instrumento para apertar as sandálias. Como o seu hábito estava rasgado e não queria perder a bolsa, levou-a na mão, continuando o caminho.
Aos poucos, entre os raios de sol e vento abafado, as figurinhas pareciam ganhar forma, corpo, função, nome. O frade, à medida que se ia aproximando, sentia-se inundado por olhares intensos e desconfiados, expressões hostis e burburinhos que arrastavam multidões a seu redor. Rapidamente, sem se aperceber, estava a ser empurrado, acusado, pontapeado, insultado e ameaçado por aldeões que rosnavam querer proteger o tirano Nicolau. De repente, dois guardas, altos e imponentes, exigiram silêncio. O clamor que invadia a clareira de imediato se extinguiu. Vestiam malhas grossas de aço e carregavam, cada um, um escudo prateado e brilhante às costas. Junípero estava caído no chão e não tardou muito até que fosse levantado, bruscamente, para que o tirano o confrontasse.
Sem qualquer tipo de misericórdia nem compaixão, foi-lhe atada uma corda em torno das mãos e arrastado para junto dos aposentos do tirano. O pobre frade, simples, inocente e de bom coração ainda não reclamara a sua inocência. Aguardava, pacientemente, o seu desfecho. A multidão seguia-o euforicamente. No silêncio, pouco tempo depois, começaram a borbulhar cânticos de curiosidade, rapidamente abafados pelo passos lentos e pesados do tirano:
— O que atentais sobre mim? – Interrogou o tirano num tom austero.
— Perdoa-me porque errei, mas nada atentei sobre ti. – retorquiu o frade com doçura.
Esta resposta confundiu todos.
— Por que é que trazeis instrumentos para queimar a nossa clareira?
— Não tinha quaisquer intenções de tal, mas, como todos aqui presentes, já errei muito. -Junípero mostrava-se calmo e sereno, contribuindo para a exaltação de Nicolau.
O tirano, de repente, encontrava-se numa situação delicada. Por um lado temia estar a julgar um inocente, por outro, o seu espírito egoísta e soberbo não aguentava pôr em causa o seu poder, independentemente de quem magoasse. E como ouvir a nossa voz em demasia pode ser enganador, assim a voz do tirano declarou:
— CULPADO! Levai-o daqui e castigai-o!
Prontamente os guardas, mais uma vez, arrastaram o pobre Junípero para que fosse castigado em praça pública. Certo é que nada tinha feito, mas a sua humildade e beleza de espírito impediram-no de se expressar. Tudo pareceu passar tão rápido que só por um instante conseguiu vislumbrar, ao longe, as águas frias que corriam e as folhas doiradas que dançavam. Então, fechou os olhos e pensou “ Que bonito é o mundo, mas o homem esquece-se dele”.
Entre clamores e implorações, revoltas e aplausos, uma voz desesperada emergiu. Era um padre, velho amigo de Junípero e que fora chamado, num ato de misericórdia, por um pobre aldeão. Correu para junto do tirano e jurou a inocência de Junípero. Deu-lho a conhecer como um dos mais conhecidos e bondosos frades. Naquele instante o tirano não sabia o que fazer. Como não queria assumir os seus erros, tomou uma tocha acesa, incandescente e atiçou fogo à clareira, outrora pálida.
A reação ao fogo foi imediata e antes de impedirem a fuga dos aldeões, muitos conseguiram escapar, incluindo Junípero. No entanto, a floresta quase encantada, iluminada por uma brisa fresca e suave esfumava, agora, em tons negros e assustadores, marcada, para sempre, pela maldade do tirano. Todavia a beleza da bondade corria, ainda, nas águas frescas e vigorosas, doiradas pelas folhas que lá decidiram descansar.
Comments