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  • Foto do escritormarcoshelena

A partir desta aula, todas as explicações e exercícios das próximas “Caixas de Pandora” pressupõem que já sabes ler e escrever o alfabeto grego. Por isso, se ainda não é o caso ou se ficaste com algumas dúvidas sobre a última aula, aconselho-te a revê-la integralmente aqui.

Curiosidades sobre algumas letras gregas

Como tinha prometido no post anterior, hoje ainda vamos ver como algumas letras gregas dispõem de uma longevidade invejável. Começamos com o dêlta (Δ/δ). A sua forma maiúscula (um triângulo) é muito sugestiva, pelo que não é de admirar que os Antigos tenham chamado precisamente “delta” à foz do Nilo. Note-se, porém, que o delta é visto da perspetiva da Grécia continental. (Já sabemos que os Gregos eram um bocado egocêntricos!) Porém, também nos nossos dias, há uma marca de café que adotou esta letra grega como o seu símbolo característico.

Passemos agora para o campo das ciências. Para quem sabe alguma coisa de física, o símbolo Δ significa “variação”, fazendo eco da palavra grega διαφορά = diferença, que começa precisamente por um delta.


Outra letra grega que triunfou ao longo de todos estes séculos foi o pi (π), que toda a gente sabe que equivale, aproximadamente, a 3,14. E porque é que se deu o nome desta letra grega à constante matemática? Se soubermos para que serve o pi em matemática, chegamos lá facilmente. Ora, nós precisamos do pi para calcular, por exemplo, o perímetro de uma circunferência. Em grego, “perímetro” escreve-se περίμετρος = comprimento (μετρος) à volta (περί). O pi vem precisamente da primeira letra desta última palavra.

Estes poucos exemplos são suficientes para ficarmos com uma ideia clara de como ainda hoje as letras gregas estão presentes um pouco por toda a parte, mas, com especial importância, nas ciências. Afinal, é uma homenagem merecida aos antigos gregos, que contribuíram de maneira insubstituível para o avanço destas áreas do saber.


Uma das mais antigas inscrições em Grego Antigo

Também tinha prometido da última vez que hoje veríamos algumas inscrições gregas. Vai ser uma oportunidade de percebermos melhor como os gregos realmente escreviam. Em baixo, está uma fotografia da inscrição de Dipylon. Este vaso está datado como tendo sido produzido no século VIII a.C.. Ao lado da fotografia, encontra-se uma transcrição da inscrição.


Conseguem identificar alguma das letras gregas que aprendemos na última aula? Se eu for sincero, lá encontro uma voga aqui ou ali, mas não consigo decifrar muito mais. Na verdade, há várias dificuldades em jogo. Primeiro, estas letras ainda refletem uma grafia arcaica. Por outro lado, a inscrição está escrita como realmente se escrevia na Antiguidade: em maiúsculas e sem espaçamento entre as letras. Para avaliarem corretamente a dificuldade da tarefa, dou-vos a tradução literal desta inscrição em português, mas escrita exclusivamente em maiúsculas e sem espaçamento entre as letras (afinal, como os gregos a teriam escrito):

QUEMAGORADOSDANÇARINOSTODOSMAISDELICADAMENTEDANÇARAELEESTE…

Agora, com espaçamentos:

QUEM AGORA DOS DANÇARINOS TODOS

MAIS DELICADAMENTE DANÇAR A ELE ESTE…

Depois, com minúsculas e pontuação:

Quem agora dos dançarinos todos mais delicadamente dançar, a ele este…

Por fim, com a ordem natural do português:

Quem de todos os dançarinos dançar agora

mais delicadamente, a ele este [vaso será dado].

Ufa! Foi um nadinha complicado… Assim, damos mais valor ao trabalho de quem estuda estas inscrições. É uma luta constante contra textos fragmentários, letras mal conservadas, ideias difíceis de interpretar! Se quiseres explorar mais esta questão, podes sempre procurar informações sobre outras inscrições famosas. Para começar, eu recomendo a Taça de Nestor. Deixa o resultado das tuas investigações nos comentários.


O grego ao serviço da ortografia


Vou agora pagar a terceira e última promessa, respondendo à questão que deixei no ar na última aula: "Como é que o grego nos pode ajudar a acabar com certos erros ortográficos?". A resposta está precisamente nas letras gregas.


Quem nunca se perguntou por que razão, em inglês e francês, temos de escrever th, y, ph ou ch, enquanto em português escrevemos simplesmente t, i, f ou qu? Vejamos as seguintes palavras:

· theater/théâtre -> em português "teatro";

· abysm/abyme -> em português “abismo”;

· physics/physique -> em português “física”;

· chemistry/chimie -> em português “química”.

Ora bem, o grego põe tudo em pratos limpos. O que se passa é que essas palavras tinham na origem um θ, um υ, um φ ou um χ. Portanto, em francês e inglês, foram transliteradas como th, y (ou não se fosse chamar “i grego”), ph e ch – e assim se mantiveram até aos nossos dias.

θέατρον / ἄβυσσος / φύσις / χημεία


A fisionomia da cara de Sócrates

Para concluirmos em beleza a nossa aula, vamos ver como é fácil aprender vocabulário em grego. Sabem que dominar vocabulário é a chave do sucesso na aprendizagem de todas as línguas e com o grego não é certamente diferente. Portanto, agora que sabes o alfabeto, podes lançar-te à caça das palavras gregas!

Dizia, agora mesmo, “em beleza”, mas a fealdade da cara de Sócrates, a quem pertence o busto mais abaixo, tornou-se proverbial na Antiguidade. Contudo, não é assim tão repugnante ou disforme que não consigamos identificar as diferentes partes do seu rosto (escultura do séc. I d.C.).




Consegues identificar todas as partes do corpo assinaladas na imagem? À partida, deves chegar lá, associando cada nome grego a uma das seguintes doenças em português:

rinite / estomatite / cefaleia / laringite /

glossalgia / otite / odontalgia / oftalmia

Estou certo de que, depois deste exercício, também podes dizer facilmente o nome dos médicos especialistas de cada uma destas partes da cara. Podes deixar as tuas propostas nos comentários. Mas há outras palavras em português que contêm estes elementos gregos, como por exemplo: "poliglota", "rinoplastia" e até "otário". De onde vêm?


Ainda outro exercício sobre as partes do rosto: tens, agora, de associar uma expressão tirada da Bíblia à sua tradução em português. Vais ver que chegas lá facilmente, porque só precisas de identificar as partes do rosto que já conheces. Ainda assim, para ajudar, essas partes encontram-se a negrito.

(A) ὀφθαλμὸν ἀντὶ ὀφθαλμοῦ καὶ ὀδόντα ἀντὶ ὀδόντος (Mateus, V, 38)

(B) ὁ Χριστὸς κεφαλὴ τῆς ἐκκλησίας (Efésios, V, 23)

(C) ἔβαλεν τοὺς δακτύλους αὐτοῦ εἰς τὰ ὦτα αὐτοῦ (Marcos, VII, 33)

(D) γλῶσσαι ὡσεὶ πυρὸς (Atos, II, 3)

(E) ἥψατο τοῦ στόματός μου (Jeremias, I, 9)

(F) τάφος ἀνεῳγμένος ὁ λάρυγξ αὐτῶν (Salmos, V, 10)

(1) Línguas como de fogo

(2) A sua garganta é um sepulcro aberto

(3) Cristo é a cabeça da igreja

(4) Olho por olho e dente por dente

(5) (Deus) tocou na minha boca

(6) (Jesus) colocou os seus dedos nas orelhas dele

Da cabeça aos pés: uma parafernália somática

Apesar de já termos passado em revista os diferentes constituintes do rosto humano, ainda não sabemos como se diz “corpo” em grego. Para isso, leiamos as palavras da consagração na Divina Liturgia de São João Crisóstomo:

Λάβετε, φάγετε· τοῦτό μού ἐστι τὸ σῶμα

Πίετε ἐξ αὐτοῦ πάντες· τοῦτό ἐστι τὸ αἷμά μου…

As palavras gregas que designam o “corpo” e o “sangue” estão a negrito. Consegues pensar em palavras portuguesas que contenham esses elementos? Atenção: em português “soma” não tem nada a ver com “corpo”, porque vem do latim summa!

O componente soma- encontra-se em “somático” (lá em cima, a abrir esta secção). O componente hema- aparece em “hematoma”, “hemoglobina”, “hemorragia”, “hemorroida”, “hemodiálise”…


Bem, hoje ficamos por aqui. Foi uma estopada, hein? Mas valeu a pena. Descobriste como sabes uma série de palavras gregas, mesmo sem nunca teres pensado nisso. Lembra-te: o grego não para e, na próxima quinta-feira, cá estamos nós para mais palavras sobre o corpo, mas também sobre os números e a alimentação. Até lá e bom estudo!

  • Foto do escritorEduardo Guerra

Ainda no ano passado voltei a pensar num texto de Josef Albers, transcrito de uma apresentação pública que fez no Berea College, nos Estados Unidos, em 1940. Comecei por perguntar à The Josef & Anni Albers Foundation se dispunham de uma tradução portuguesa do texto, como não tinham, ofereci-me para a fazer.


É esta mesma tradução que gostava de partilhar convosco: um discurso directo, simples, mas muito objectivo sobre o que é a Arte.


Para que serve? Quando existe? Quando não existe? São as grandes questões que todos nós temos quando nos relacionamos com Arte. Aliás, são as primeiras questões que todos os alunos têm quando pensamos e falamos sobre Arte.


Neste texto conseguimos compreender a que diz respeito a Arte. Onde começa, para onde vai. E conseguimos surpreender-nos com a sensação de que sempre esteve aqui, perto de nós e não distante, num lugar longínquo que nada tem que ver connosco. Lembremo-nos do que a Arte é e para que serve.


Tomei ainda a liberdade de inserir algumas imagens ao longo da tradução, que servem de comentário e suporte visual para o leitor.



Josef Albers ensinando em Yale, por John Cohen, 1955

© John Cohen / The Josef and Anni Albers Foundation, 2013



*


O sentido da Arte


Durante as férias do Natal vi um filme, em Nova Iorque, que tentava encorajar o estudo das Artes ao dizer que todas as pessoas são artistas. Esta noção era passada no filme apenas pela asserção de que arar e plantar, ou coser e costurar, são Arte.


Neste mesmo filme, alertaram-me para o facto de que o termo Arte, tal como o entendemos hoje, não existia na língua Inglesa até à segunda metade do último século (XIX). Até então, queria dizer, do mesmo modo como em Arte ainda diz hoje em dia sobretudo, capacidades ou habilidades técnicas. É esta a razão para chamarmos aos acrobatas do circo de artistas, e podermos falar, por exemplo, da Arte da Guerra.

Hoje em dia existe a tendência para confinar o termo Arte apenas às chamadas Belas Artes, ou seja, pintura e escultura. Neste entendimento, as Artes aplicadas são consideradas de segunda categoria, o Artesanato ainda menor e a indústria está, por assim dizer, do outro lado do espectro.


Da forma como eu a vejo, Arte significa, hoje em dia, mais do que capacidades técnicas ou mestria. Arte tornou-se numa palavra com um pendor mais espiritual. Por isso, entendo que a Arte compreende, para além das chamadas Belas Artes, também a música, a dança, a escrita; também a fotografia e a costura ou o paisagismo. Acredito ainda que tanto o Artesanato como a indústria podem produzir Arte.


Enquanto processo, a Arte inclui todas as actividades e esforços que expressam a mentalidade humana, seja ela do indivíduo ou de um grupo, através da forma — e, por isso, perceptível através dos nossos sentidos. A Arte enquanto resultado, enquanto obra de Arte, abraça formas feitas pelo homem que encarnam e revelam — de forma consciente ou não — emoções humanas, com o intuito de reproduzir condições iguais ou semelhantes no espectador ou ouvinte.


Regressando ao filme mencionado, não acredito que todos sejamos artistas e não consigo acreditar que, por exemplo, remendar, seja feito com o intuito de expressar ou suscitar sentimentos. Mas acredito que todos temos tendências artísticas, se não mesmo habilidades, e que todos — pelo menos até certo ponto — apreciamos qualidades formais como cor, forma, espaço, movimento, ritmo e proporção.


Vêem, tive de dizer-vos logo de início as minhas opiniões, isto porque não existe uma interpretação objectiva daquilo que a Arte é. Não existem regras definidas, ou sistemas, pelos quais se possa avaliar a Arte ou, para distinguir o que é ou não, Arte. E que, apesar das diversas teorias estéticas, apesar das múltiplas definições de Arte, não existem explicações definitivas acerca do que a Arte é, com que todos possam concordar, e esta é a causa única e real da Arte ela própria.


Isto porque a Arte está preocupada com algo que não pode ser explicado por palavras ou descrições literais (números, estatísticas). O simples facto de que existe algo na vida independentemente de, ou inalcançável por, pensar e falar e por consequência inexprimível por palavras, é a razão porque assobiamos e cantamos e gesticulamos e dançamos; porque sorrimos ou saltamos quando estamos felizes, por exemplo.

O simples facto de dependermos mais de sentimentos do que de razões lógicas, faz da Arte um factor importantíssimo na vida, já que esta é a demonstração da própria vida humana. E daí, a questão “O que é a vida?” ser tão problemática quanto interessante quanto a pergunta “O que é Arte?”. De modo a dizê-lo de uma forma muito simples, os nossos sentimentos e emoções são a razão pelo qual temos música e pintura, dança e arquitectura e porque temos modas e estilos em constante mutação.


Quando digo “vermelho”, podemos ter a certeza de que, se aqui estão centenas de pessoas, temos centenas de diferentes vermelhos nas nossas cabeças. Mesmo que tente descrever um vermelho específico, como por exemplo um vermelho que todos reconhecemos quotidianamente e frequentemente, como por exemplo o vermelho das imagens da Coca-Cola. Ainda assim, acredito que vemos vermelhos diferentes. Só na apresentação desse vermelho específico podemos unificar a nossa visão (contudo, as nossas reacções emocionais permaneceram diferentes). Dei-vos este exemplo de modo a conseguir demonstrar apenas uma experiência inalcançável por expressão verbal.


Josef Albers, Estudo para uma homenagem ao quadrado: Molhado e seco, 1969

Óleo sobre masonite, 40 x 40 cm


Quando digo “dez cêntimos”, espero que todos consigamos ver na nossa imaginação essa peça de metal redonda, mostrando num dos lados o perfil de uma senhora energética chamada Liberdade e do outro lado, algumas armas ou símbolos de guerra circunscritos aos “Estados Unidos da América”. Os nossos pensamentos podem ainda avançar e afirmar: de prata, uma moeda, um cêntimo, ou o suficiente para comprar duas Coca-Colas. A este tipo de reacção chamamos, psicologicamente falando, associação.

Quando digo “Berea College” e nada mais — só “Berea College” e depois paro, as minhas palavras pararam, mas a nossa mente não. Vocês continuam e podem até mesmo pensar “É aqui. Esse é o nosso colégio, no Kentucky.Tem 2000 alunos,” e por aí em diante. Aqui, temos reacções chamadas de associações.


Mas existe ainda um outro tipo de reacção que vem mais do nosso coração ou alma, do que do nosso cérebro. Imaginem que as vossas férias terão terminado em breve: em breve regressarão à escola. Muitos de vocês dirão: “Óptimo, (pelo menos espero eu), estou contente por rever os meus amigos e talvez até mesmo os professores”. Sentem-se felizes, orgulhosos ou até possivelmente, receosos. Este tipo de reacções são chamadas de emoções.

Um outro exemplo: quando digo “Black Mountain College”, de que vocês saberão provavelmente menos do que “Berea College”, aí é que o nosso conhecimento é limitado, as nossas reacções inclinam-se para um lado mais emocional. Podem pensar: “O que é?” Ou: “Que pequena, tem apenas sete alunos? Que progressivo”. Dois pontos de exclamação.


Estes parcos exemplos servem para clarificar o meu argumento de que a Arte diz respeito a emoções e indicar que a Arte não existe enquanto conhecimento ou informação, mas antes para demonstração e experiência de aproximações emocionais ou relações emocionais.


Quando referi anteriormente que a insuficiência das palavras é uma das razões para a existência da Arte, aí, não me deveria esquecer de um tipo especial de palavras que não possuem nenhum tipo de conteúdo descritivo, que não nos lembram de nada do mundo natural ou ideal. Produzindo contudo, ao invés de uma imagem, tal como a música, reacções emocionais, sentimentos.


Por exemplo:

Trallala Trallala

Hey nonny Hey nonny

Alguns refrões Alemães:

Heididel Heididel Heidideldidum

Ou Juchheissa Juchheissa Juchherassassa

Americano contemporâneo: Hotchacha ou Boob boop a doop


Agora, deveríamos recordar que a própria Natureza provoca emoções em nós. Olhar para um pôr-do-sol ou para um céu estrelado faz-nos respirar de forma diferente. Achamos agradável ver uma cara simpática, uma figura proporcional e ficamos entusiasmados com flores e borboletas, com nuvens de plasticidades incríveis ou reflexões do sol sobre a água ou sobre a neve. Uma paisagem outonal colorida faz-nos felizes; um dia cinzento, sentimentais. As nossas reacções neste tipo de situações são participações emocionais na demonstração da vida pela Natureza.


Aqui as questões surgem: Qual a grande diferença entre emoções causadas pela Natureza e emoções causadas pela Arte? O canto de um pássaro é uma combinação de tons semelhante à música. Contudo, não consideramos o canto de um pássaro como música e, consequentemente, não como Arte. Ambos os casos de combinações de sons são demonstrações de vida, mas a música expressa vida humana, aí há uma diferença. A Arte vem da alma humana e fala para almas humanas. A Arte preenche necessidades espirituais através de mensagens espirituais.

Acredito que todos concordamos que o Pináculo (da Faculdade) parece quase o mesmo no Outono de 1840 como parecerá no Outono de 1940. Contudo, uma paisagem do Pináculo pintada em 1940 será definitivamente diferente de uma paisagem da mesma vista pintada há cem anos. Isto diz-nos outra vez que o testemunho do artista (neste caso, uma paisagem) possui mensagem e que esta mensagem está relacionada com a mentalidade do artista e com a própria mentalidade do seu tempo.



Artist Josef Albers com a sua

turma no Black Mountain College,

fotografado para a Life magazine

© Fotografia por Genevieve Naylor

/ Corbis via Getty Images

















Destas duas comparações: (A) entre o canto de um pássaro e música e (B) entre duas paisagens da mesma vista em períodos diferentes, concluímos que não é a Natureza a primeira preocupação da Arte, mas antes, o espírito humano. Para a Arte, a Natureza é apenas um ponto de partida.


Ou seja, noutras palavras, que a Arte é antes revelação e não informação, expressão em vez de descrição, criação em vez de imitação e repetição. Boa representação teatral, enquanto Arte, aparece por de trás da peça e é bem mais do que mera interpretação ou imitação.

Se existe mesmo um paralelo entre Arte e Natureza, nomeadamente no facto de que tanto a Natureza como a Arte demonstrarem vida, então o artista não está de todo em competição com a Natureza mas antes a criar a partir de — como criador da imagem. Deste modo, o seu objectivo não é o de imitar o resultado da Natureza mas antes o “processo” da Natureza. Ou seja, criar vida, nomeadamente na forma de organismos. “Forma” significa aqui de novo, cor, forma, espaço, etc..


Isto indica que nem todo o pintor, escultor ou actor é um artista, isto porque muitos deles são apenas imitadores dos resultados da Natureza, acreditando, por exemplo que, quanto mais “naturais” os seus trabalhos pareçam, mais artísticos o são. O seu erro está em acreditar que na Arte o registo factual vem antes da confissão humana.


Eu já vi, e espero que vocês também já tenham visto, bons vestidos e boas cadeiras que nos dizem mais sobre a alma humana do que muitos quadros. Na minha opinião, um bom costureiro ou modista, é melhor artista do que um escultor medíocre. Acredito ainda que existem mais leigos com sentimento artístico do que artistas verdadeiramente artísticos.

De modo a explicar o que sentimento artístico ou visão artística querem dizer, deixem-me começar com uma afirmação negativa. Ver a erva como um vegetal comestível, qualquer vaca o faz. Mas assim que, por exemplo, vemos a erva como carpete ou pêlo, como uma montagem, ou como uma floresta (vamos supor que temos o olhar suficientemente submerso nela), ou quando vemos a erva como cor ou como várias tonalidades de uma cor em mutação com um certo efeito psíquico; ou como um aspecto táctil ou plástico, ou como um movimento multiplicado. Aqui entra o ser humano que naturalmente quer ser criativo — aqui aparece a mente produtiva e flexível que quer fazer qualquer coisa com o mundo em seu redor. Aqui surge o poeta, o artista, o cientista ou o filósofo. Eu gosto de acreditar que todo o ser humano está naturalmente inclinado a desenvolver-se como um destes tipos de homo sapiens.


Josef Albers

Coruja (II), 1917

Tinta sobre papel

50.2 × 37.5 cm

© The Josef and

Anni Albers Foundation
















Espero que isto ajude a clarificar que o reconhecimento exterior não é o propósito da Arte, mas antes o de desfrutar e respeitar qualidades formais que revelam a nossa participação emocional na vida. Enquanto ouvirmos tons isolados ou apenas vários tons, não ouvimos música de todo. A música está entre os tons. Ouvimos música se sentirmos as relações entre os sons. Ou, enquanto ouvirmos apenas palavras num poema, demoraremos uma eternidade a perceber a sua poesia. A Arte de um poema está entre, atrás ou acima, ou para lá das palavras. Depende de como as palavras ou os tons são escolhidos e como são colocados em conjunto, de como a cor é usada na relação com outras, de como as figuras são dispostas numa composição (não importa se falamos de um palco ou de uma pintura), tudo isto é decisivo em Arte.


A Arte está preocupada com o COMO e não como O QUÊ; não com o conteúdo literal, mas com a sua acção no conteúdo. A acção — como é feito — esse é o conteúdo da Arte. A Arte está relacionada com a qualidade e não com a quantidade.


Aqui deveria aproveitar a oportunidade para clarificar um preconceito muito preocupante hoje em dia em todas as aproximações à apreciação da Arte. Uma crença enganosa promovida por alguns especialistas de Arte, que um retrato tem mais valor que uma paisagem. Não e não, de novo! Uma canção popular pode ser muito melhor do que uma ópera e, muitas vezes, é. Um desenho pequeno, pode ser mais valioso do que um mural monumental ou uma imitação de uma Catedral Gótica. É um erro acreditar que um material tecido à mão tem maior valor artístico do que um tecido por uma máquina.


Será que alteraria a nossa apreciação saber o seu nome, origem, preço ou raridade? O mármore não é sempre mais bonito do que o tijolo. Isso depende da aplicação e tratamento e nunca de datas ou de anedotas. A força visionária, a expressão genial, a intensidade emocional são o que contam.

Noutras palavras, o que conta é quanto o artista se envolveu na sua concepção, como tratou o seu médium em função da sua expressão e, o quão intensamente esta nos fala. De novo, em Arte, o COMO é decisivo e não o O QUÊ. Com esta afirmação chegamos ainda a outra diferenciação, nomeadamente entre Arte e Ciência.

Mas, como o nosso tempo é limitado e, como deveria ainda guardar algum para mostrar algumas reproduções de obras de Arte, tenho de ser muito breve. Este tema daria material suficiente para toda uma filosofia.

Tanto a Ciência como a Arte são aproximações espirituais à vida mas, as suas tendências são diferentes e muitas vezes opostas. Enquanto fenómeno da vida, a Arte está principalmente preocupada com a existência dos fenómenos, a Ciência com as razões da sua existência. Deste modo, a Arte é capaz de expressar e a Ciência, de descobrir.


O método da Ciência é maioritariamente dedução, o da Arte, indução. A Arte é subjectiva e gosta de demonstrar; a Ciência, por sua vez, é mais objectiva e gosta de explicar. A Arte pretende acreditar e prefere a síntese, a Ciência quer saber e precisa de analizar. Estes são, claro está, argumentos algo rudes e, quer a Arte quer a Ciência, cruzam-se obviamente.


Se conseguisse expressar esta diferença com apenas sinais de pontuação, aí acredito que, após a palavra VIDA, a Arte poria um ponto de exclamação e a Ciência, um ponto de interrogação. A Arte não tem relação com o que aqui estou a tentar fazer, nomeadamente, desenvolver uma teoria. Contudo, acredito que preciso desta teoria como preparação para a experiência de desfrutar da Arte. Digo propositadamente experienciar e apreciar ao invés de compreender Arte, porque a Arte não pede uma compreensão no sentido intelectual do termo.

Compreendemos uma rosa quando a admiramos, ou o ouro, ou uma pedra preciosa? E, o que seria a compreensão do charme? Podemos apenas admirar o charme. E alguém é um conhecedor de vinho, quer dizer, que tem gosto, ou seja, sentimento por vinho. Esse é o fulcro. O contacto com a Arte é algo como o Amor. Poderá haver algumas razões para amar, contudo, o Amor real não precisa de razões.


A pergunta prática agora é como desenvolver um gosto ou sentimento por Arte. Se alguém diz: “não ouço música alguma”. Isto não representa que não exista música. Provará, no entanto, que esse alguém não possui ouvido para a música. O mesmo se passa com a Arte. A consequência é: este alguém não tem de ser a favor ou contra [a Arte].


Beber vinho pela primeira vez não é razão para dizer: “Isto é bom vinho”. Não interessa se se gosta ou não. Ter um conhecimento de vinho requer a prova de vários vinhos e não beber vário vinhos. O mesmo acontece com a Arte, isto porque a avaliação nasce da comparação. De modo a compreender Arte temos de a ver, ver de novo, comparar trabalhos semelhantes e diferentes e encontrar a necessidade da sua existência nos seus problemas formais.

Deste modo, a principal forma de estudar Arte é praticar Arte. Isto confere-nos, pelo menos, respeito pela Arte real.

De forma a fazer um resumo, o sentido da Arte é: Aprende a ver e a sentir a vida; isto é, cultiva a imaginação; isto porque existem ainda maravilhas no mundo; porque a vida é um mistério e sempre será. Mas estejam alerta. Consequentemente, Arte significa: Tens de acreditar, ter fé, ou seja, visão cultivada.

Através de obras de Arte, somos permanentemente recordados de que devemos ser equilibrados; connosco mesmos e com os outros, a ter respeito pela proporção, ou seja a manter a relação. Ensina-nos a ser disciplinados e selectivos entre a quantidade e a qualidade. A Arte ensina-nos todo um mundo educativo.


Josef Albers

Mulher (I), 1914

Lápis sobre papel

25 × 34 cm

© The Josef and

Anni Albers Foundation









É ser-se pobre, é o recolher apenas conhecimento e também, reconhecer que a economia não é apenas um caso de estatísticas mas antes uma proporção suficiente entre esforço e efeito. Dizendo-o de modo mais nobre: Arte é um credo neste último verso do primeiro capítulo do Génesis, onde é dito: “E Deus viu tudo o que fez e parou para observar, era muito bom.”


*


  • CarolinaRego


Mais do que nunca temos saudades dos passeios que dávamos pelo jardim, das viagens a novos países, de visitar um museu, etc…

Destes três tópicos, falarei da visita ao Museu, até porque alguns, nesta fase de isolamento social, têm aberto as suas portas gratuitamente e online.




Porque é que gostamos de fazer viagens que nos levem aos melhores museus? Visitamos um museu apenas para tirar a selfie e mostrá-la nas redes sociais? Ou existe realmente o reconhecimento de algo com valor? Regressamos da viagem mais certos do que é belo

(ou do que é feio) e gratos por podermos guardar e conhecer história com milhares de anos?

Vale a pena pensar porque o fazemos, quais as motivações que nos levam a sair de casa, a que desejos isso responde, para que quando o pudermos voltar a fazer, seja um encontro verdadeiramente belo.


Há cerca de um ano atrás, tive a graça de ir à cidade de Nova Iorque e, entre outros, visitei o MoMa, Museu de Arte Moderna, onde tive uma das piores experiências de como não visitar um Museu, mas que serviu para me educar.

O quadro mais famoso, ou pelo menos mais procurado desse museu é a “Noite estrelada”, 1889, de Van Gogh que está exposto, junto a outros tantos igualmente bonitos, numa sala com cerca de 50m2. Quando cheguei finalmente à sala vi, à frente do quadro, um aglomerado de pessoas que se empurravam de uma forma razoavelmente ordenada para que, os primeiros que chegassem à frente pudessem olhar para o quadro cerca de 5 segundos e, naturalmente depois teriam de sair para dar lugar a outros. Mesmo que o objetivo original de muitos que formavam aquela multidão, onde me incluo, fosse o de observar o quadro com calma, a maior parte fê-lo apenas mecanicamente, sem perceber que não ia conseguir observar nada, estando na multidão, ou não.


Apesar disto, a maior parte das vezes que visitei Museus e vi obras de arte pude fazê-lo calmamente, de forma a abrir-me a mundo, para responder a este desejo de ver novas culturas, estar de saída do meu pequeno mundo, porque isso nos educa. É também uma forma de contemplação, de observar, de prestar atenção ao que temos diante, à beleza de um céu cheio de estrelas, de um cipreste bamboleante, de uma paisagem inspiradora. Poder ver um quadro ao vivo e não apenas em suporte digital permite esta contemplação de alguma coisa real, com cheiro, de um determinado tamanho, texturas, que não é como eu a imaginava ou pensava. Essa imagem mais verdadeira que gravamos na memória leva-nos a uma maior imaginação e ao desenvolvimento de algum processo criativo, tornamo-nos mais ricos. Para além disso, dá-nos um enorme prazer poder ver coisas bonitas, são momentos de verdadeiro descanso. Também, ver obras de arte com a família, com os amigos ou professores, não só permite esta partilha de qualquer coisa que nos comove, mas sobretudo uma olhar mais atento, diferente do nosso, que nos ajuda e educa. O meu desejo de ver o "Starry Night" foi também para poder falar dele aos outros, especialmente aos meus alunos que gostam tanto de Van Gogh.


Hope to see you soon, Starry Night!


 

Nota: Apesar de desfocada, descentrada e ter sido tirada no caos daquela multidão de que falei, foi esta a fotografia que me levou a este texto.

Voltem à galeria do telemóvel, dos álbuns, do computador e, se tiverem fotografias de alguma visita a um Museu ou outro lugar de beleza, pensem porque a tiraram, tentem fazer memória daquilo que observaram e partilhem.

Mais São Tomás
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