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Foto do escritormarcoshelena

Atualizado: 31 de mar. de 2020

Começamos hoje uma série de artigos sobre a peste na literatura clássica. Pode parecer um tema não grato, até porque, durante estes últimos dias, não temos quase ouvido falar de outra coisa, por pouco que liguemos o televisor. No entanto, longe de ser mórbida, esta escolha será uma ocasião para perceber como se construiu a imagem da peste no imaginário ocidental, ao mesmo tempo que lemos bons textos literários e refletimos sobre a situação pela qual estamos a passar. Aqui e ali, também haverá a possibilidade de meditar sobre o comportamento humano e as relações sociais em tempo de pandemia. Não deixes de comentar e partilhar as tuas opiniões sobre o assunto!

Para entrarmos em cheio no tema, escolhi alguns versos da primeira obra literária da literatura grega, um texto fundador por excelência: a Ilíada. Se calhar, alguns de vocês até já leram partes desta epopeia. (Se ainda não leram, têm agora muito tempo para fazê-lo…) Mas, melhor ou pior, todos nós sabemos que a Ilíada se passa no último ano da Guerra de Troia e também temos uma ideia de que o culpado de tudo aquilo foi Aquiles e a sua “cólera mortífera”. Perdão, o culpado foi mesmo Páris e a sua paixão avassaladora por Helena, que, diga-se de passagem, também tinha algumas culpas no cartório - ou não fosse ela uma mulher casada que se deixou seduzir. Contudo, no início do poema, Homero troca-nos as voltas e coloca todos os acontecimentos daquele último ano de guerra sob a influência da cólera de Aquiles. Uma cólera que, para sermos sinceros, tinha pouca razão de ser, porque casos como o dele têm-se resolvido ao longo da história com muito menos azedume e mais bom senso. O que estava em causa era o seguinte: Crises, sacerdote de Apolo, sofria com o facto de Agamémnon, soberano dos Gregos, ter raptado a sua filha, Criseida. Por isso, tentava por todos os meios recuperá-la, o que consegue a custo. Contudo, Agamémnon acha que não deve ser o único a fazer cedências e obriga Aquiles a abrir igualmente mão de Briseida, a sua amada cativa. Aqui é que a porca torce o rabo: o valentão do Aquiles amua e vai ser complicado pô-lo de novo a combater.

No meio de tudo isto, o interessante é que Homero começa a narração da sua obra com uma peste. (Daí o título deste post.) Não é lá maneira muito luminosa de começar uma epopeia, ainda por cima quando o deus que lançou essa mesma peste sobre o povo era Apolo, deus tradicionalmente associado à luz. Contudo, esta escolha é possivelmente um símbolo do mal que se abate sobre todo um povo, se os seus dirigentes não procurarem o bem-comum, ao ponto de deitarem a perder tudo, precisamente quando tudo se encaminha para a vitória. Ainda hoje acontece...

Mas comecemos por ver como Homero descreve a reação de Crises, depois que Agamémnon, o chefe da expedição grega, se recusa, num primeiro momento, a entregar-lhe a filha, Criseida (I, vv. 33-36, 42):

Amedrontou-se o ancião e obedeceu ao que fora dito.

Caminhou em silêncio ao longo da praia do mar marulhante.

E depois de se ter afastado para longe, rezou o ancião

ao soberano Apolo, que Leto de belos cabelos deu à luz:

"Que paguem com tuas setas os Dânaos as minhas lágrimas.”

Ao lermos estes versos, podemos imaginar o rosto de Crises, um ancião, cheio de medo e despeito. O medo que sente por ter sido silenciado por Agamémnon reflete-se na taciturnidade que se apodera dele, ao passo que a vontade de vingança amplifica-se com o som das ondas que rebentam na costa. A caminhada pela praia é uma imagem do lento remoer do ressentimento no coração de Crises, ressentimento que não encontra maneira de exteriorizar-se. Mas não esqueçamos que Crises era sacerdote de Apolo, pelo que o deus teria de defendê-lo. Por isso, o sacerdote vocifera aquela súplica terrível: “Que paguem com tuas setas os Dânaos (os Gregos) as minhas lágrimas.” Percebemos imediatamente que, para o poeta, a peste não tem nenhuma causa natural, sendo exclusivamente vista como castigo divino por uma afronta. No entanto, se não soubéssemos que o resultado desta súplica seria uma peste medonha, a verdade é que, até este momento, não temos nenhum indício sobre o que estas “setas” possam efetivamente ser. Poderia muito bem ser uma retaliação militar ou qualquer outro fenómeno mais ou menos sobrenatural. Porém, é curioso pensar que esta associação entre “setas” e “pestilência” se tornou tão duradoura ao ponto de São Sebastião, que a iconografia nos representa martirizado debaixo de uma chuva de setas, ter sido eleito como o patrono celeste contra a peste.




Se continuarmos a ler o texto, vemos (ou melhor, ouvimos) como aparece o deus Apolo em pessoa para vingar o seu sacerdote e fustigar impiedosamente os Gregos (vv. 43-47).

Assim disse, orando; e ouviu-o Febo Apolo.

Desceu do Olimpo, com o coração agitado de ira.

Nos ombros trazia o arco e a aljava duplamente coberta;

aos ombros do deus irado as setas chocalhavam

à medida que avançava. E chegou como chega a noite.

Reparem como os sentimentos do deus são iguais aos do seu sacerdote: «com o coração agitado de ira». A sua descrição física coincide com a tradição que o descreve como arqueiro exímio. É pavoroso imaginar um deus que desce dos céus e que atira setas com uma destreza perfeita, não errando o alvo. Atira-as mesmo antes de o vermos apontar e atirar. Ficamos apavorados só de ouvi-las chocalhar na sua aljava e cortar o ar, silvando impiedosamente. Talvez resida aqui a explicação da associação entre “setas” e “pestilência”, na medida em que a causa da pestilência não se vê – e por isso é que é tão temida , mas fere o doente de maneira profunda e inescapável. Mais uma vez, sintam o paradoxo do deus Apolo estar associado à noite: «chegou como chega a noite». O que acham que esta noite exterior pode sugerir? Quanto a mim, vejo nela uma imagem da confusão geral no acampamento grego e da inatividade inicial dos chefes, que são incapazes de propor prontamente medidas criativas e flexíveis para resolver a crise.

Depois sentou-se à distância das naus e disparou uma seta:

terrível foi o som produzido pelo arco de prata.

Primeiro atingiu as mulas e os rápidos cães;

mas depois disparou as setas contra os homens.

As piras dos homens ardiam continuamente.

Durante nove dias contra o exército voaram os disparos do deus.

Ao décimo dia, Aquiles convocou a hoste para a assembleia… (vv. 48-54)

A imagem da propagação da doença como uma chuva de setas é ainda levada a outro nível, quando vemos a sequência dos seres afetados: primeiro as mulas, depois os cães (que, embora rápidos, não conseguem escapar) e só no final os homens. Há aqui quase uma noção científica de propagação da doença e dos animais que a podem transportar. O cenário é apocalíptico. É óbvio que os “nove dias” não são anódinos: são os anos da guerra que já passaram e que foram, também eles, uma verdadeira peste.

De repente, aparece Aquiles, que neste momento é o representante literário do político que, no meio do pânico, tem o sangue frio necessário para criar um comité de emergência, propor medidas e exigir sacrifícios, depois do choque inicial e da apatia generalizada. A noção de bem-comum talvez não lhe seja estranha, mas nós sabemos, pelo resto da história, que ele próprio só a custo participará neste esforço coletivo. Segue-se a proposta de devolver Criseida ao pai, depois de Calcas, o adivinho, ter explicado que a causa do flagelo era precisamente o cativeiro da donzela.

Querem saber se tudo se resolveu depois de Agamémnon ter acedido (a ferros!!!) em entregar a menina dos seus olhos? Leiam agora o desenlace da peste para sabê-lo (vv. 446-446, 450, 453-457)!

Assim dizendo, entregou-a nos braços do pai, que recebeu

Com regozijo a filha amada…

Entre eles levantou Crises as mãos e rezou em voz alta:

“… Tal como antes deste ouvidos à minha prece,

E para me honrares fustigaste a hoste dos Aqueus,

Também agora faz que se cumpra isto que te peço:

Afasta dos Dânaos a pestilência repugnante.”

Assim disse, orando; e ouviu-o Febo Apolo.

Contaram o número de versos que separam o início da peste e o seu fim? São ainda uns bons 400 versos. É muito significativo que assim seja. Não serve apenas para termos uma ideia de como a situação custou psicologicamente a passar, apesar de ter durado apenas alguns dias. (Depois de estarmos em casa há pouco mais de duas semanas, parece que já passou uma eternidade...) Todo este intervalo de versos permite também que compreendamos que a solução para a pestilência não estava só na entrega de Criseida. De facto, segundo o oráculo, bastaria entregar Criseida para restabelecer a situação; todavia, Homero preferiu colocar o fim da peste só depois que Aquiles, mau grado seu, também entregou Briseida. Podemos interpretar esta escolha como uma piscadela de olho. Talvez Homero quisesse sugerir que a verdadeira solução dos problemas dos Gregos passava por um comum acordo entre os chefes da expedição e por cedências de todos. Não bastava que Agamémnon, o chefe dos chefes, fizesse a sua parte; todos tinham de estar envolvidos, nem que fosse a nível moral. Sem dúvida, esta é uma mensagem mais do que atual na nossa situação corrente! Antes mesmo de acabar, não resisto a sublinhar, a título de brincadeira, que o nome do sacerdote "Crises" indicia muito que ele estava mesmo fadado para se ver envolvido num imbróglio destes. Mas, honra seja feita à etimologia grega, "Crises" tem que ver com "ouro" e não "crise". Porém, quem sabe?, talvez as duas realidades estejam mais vezes relacionadas do que convém!...

Se gostaste deste texto, continua a visitar o nosso blog! Em breve, encontrarás outros textos clássicos com reflexões sempre atuais.


A tradução da Ilíada é a do Prof. Frederico Lourenço, que anda a dar aulas de Latim on-line. Deem uma olhadela em Latim do zero.

Maria Pacheco de Amorim

A disciplina de Inglês do 12º ano é dedicada ao estudo de uma série de grandes romances britânicos e americanos do século XX. Tópicos como o ponto de vista na narrativa, a solidão existencial ou certas preocupações pós-modernas como o questionamento da verdade histórica e a relação com a alteridade vão sendo levantados, interrogados e ajuizados criticamente. Chegados a este ponto do caminho, é hora de cada aluno escolher um dos romances incluídos no currículo da disciplina e lê-lo sob a perspectiva de um dos vários temas discutidos em aula. O resultado desta leitura, apoiada por bibliografia secundária, será a escrita de um ensaio, de cujo projecto os alunos apresentaram agora o resumo.


Uma das obras sob inspecção é de Kazuo Ishiguro, escritor britânico que, tendo nascido em Nagasaki, veio para o Reino Unido em 1960 com a família, aos cinco anos. Mais conhecido pelo seu livro Os Despojos do Dia (1989) - muito por causa do filme de James Ivory, protagonizado por Anthony Hopkins e Emma Thompson -, Nunca Me Deixes (2005) é tão ou mais merecedor de atenção. É seguramente um livro para o nosso tempo. Não poderia deixar de atrair os alunos, quer pelos problemas tão contemporâneos como eternos que coloca, quer pela história comovente que relata.


Antes de terem o prazer de ler (no original) os resumos escritos pelos quatro alunos que elegeram este romance como objecto da sua investigação, gostaria de vos introduzir ao principal sentimento que perpassa por toda a obra deste escritor. Apesar de ter crescido no Reino Unido, Kazuo Ishiguro não perdeu as suas raízes nipónicas e aquele "pathos de todas as coisas" conhecido por "mono no aware" é, mais uma vez, a atmosfera construída ao longo deste romance e a nota em que termina. Em vez de uma longa definição, deixo aqui uma canção retirada do que foi, pelo menos para mim, um dos melhores discos saídos o ano passado: Four of Arrows, dos Great Grandpa. A composição do álbum foi influenciada pela leitura que o líder da banda fez da obra de Ishiguro, por isso, como não podia deixar de ser, o single que inaugurou o ciclo de promoção do disco foi precisamente "Mono No Aware". E, de facto, nada descreve tão bem um sentimento como uma canção: "It now reminds me of my failing grasp/ of the present, memory, self and past".


 

Frederico Meira | This is a book about the human search for the meaning of life and how this is something inherent to the human condition


The novel I have chosen, Never Let Me Go by Kazuo Ishiguro, tells the story of three friends, Kathy (who is also the first person narrator), Ruth and Tommy, from the time they are still in school to the very end of their lives. From the beginning of the novel, we, readers, get to know some odd things about their school, Hailsham: there are many activities going on there which are completely strange for us (even the narrator keeps saying “I don’t know how it was where you were”, which reveals Kathy’s conscience that Hailsham is not like the other schools). This makes us a little suspicious: we begin to think that there is something else about that school that has not been revealed yet. As we move forward on the novel, we understand that “strange thing” about Hailsham: all its students were cloned from real human beings. Moreover, it is revealed that their existence has an actual purpose, which is to become “donors” (people who donate organs) when they are already grown-ups.


Since the beginning of the novel that we were confronted with this concept of “donor”, but we had never fully understood its meaning. When we finally do, some aspects start to make sense, of course, but some remain (apparently) imperceptible. It would be normal for students to assume that their lives had already a meaning, that someone had decided they would became donors, and therefore they would try to make the best out of the time they had left before that. But Kathy (mostly) and her friends, although that might be what appears at first sight, never stop asking the ultimate questions: they want to know the whole truth and not just what they are told as kids. This is a book about the human search for the meaning of life and how this is something inherent to the human condition.

 

Inês Villa de Freitas | Clones are rational, therefore they can be considered human


Based on my reading of Never Let Me Go and Donald Davidson’s essay "Rational Animals" (Subjective, Intersubjective, Objective), in my final paper I will try to prove that clones are so similar to humans that it is possible and even fair to consider them human. In my work, I will also touch on what can be considered the fundamental characteristics of a human being and relate those to the characters of the book so as to illustrate why they should be considered human.


After reading part of Davidson’s essay, we can safely conclude that what distinguishes humans from other irrational creatures is their ability to have “propositional attitudes such as belief, desire, intention, and shame”. Kathy, Never Let Me Go’s first person narrator and one of its main characters, has all these essential characteristics. The way she thinks, expresses herself and acts is so similar to a human that the reader only discovers that she and all her friends are clones well into the story. Davidson concludes that “rationality is a social trait. Only communicators have it”. In Never Let Me Go, Hailsham’s students have the ability to communicate, express their feelings (especially complex emotions that we commonly associate with humans such as empathy, love, desire, regret) and even create art, which is undoubtedly a sophisticated form of expression.


Exploring how Hailsham shapes the characters’ sense of identity and how this identity evolves as they mature as well as important topics such as the essence of a person, rationality and the importance of language, will help me illustrate that clones in Never Let Me Go can be considered identical to humans since they share the fundamental traits associated to mankind.

 

Leonor Gomes | Ruth's fear of loneliness is the reason why she is unable to deal with the inevitability of unhappiness and loss as a natural part of life


This brutally heartfelt novel, by Kazuo Ishiguro, makes use of alternative history to approach several interesting themes in a faithful and unbelievably touching portrayal of human behaviour, while trying to cope with the ever-growing awareness of the weight of life and the choices we make. One of the themes with which Never Let Me Go concerns itself is the inevitability of the passage of time and the loss and pain that necessarily come with it. In this light, while reading, I was struck by the contrast in behaviour between the characters Kathy and Ruth. I decidedly concluded that what makes them so different is their outlook on life regarding the aforementioned theme.


Growing up, while Kathy gracefully accepts the unchangeable nature of events in her life, but still looks for answers to her questions, Ruth however seems to wilfully live in a fantasy world, where teachers give her beautiful pencil cases, where she has a virtually perfect relationship with her boyfriend and wants to work in an office someday. This shows deep unsettlement and wishful thinking on her part that simply aren’t compatible with the idea of Ruth accepting herself as she is, but rather reveal that she lived most of her life overshadowed by fear. These wishes, that she unnaturally forces into reality and that take a toll on her friendships and on her own self-esteem, all have in common the root issue that makes her unable to cope with reality: her fear of loneliness. That this is the reason Ruth is unable to deal with the inevitability of unhappiness and loss as a natural part of life, will be the main thesis in this paper.

 

Margarida Seabra | We are story-telling animals


Throughout this essay, I intend to argue that we are story-telling animals. This thesis comes from an extract from “The Virtues, the Unity of a Human Life and the Concept of a Tradition”, where MacIntyre defends the idea of a narrative self. The thesis that we are story-tellers has two grounds for MacIntyre. On the one hand, the author states that it is through contact with stories that we learn how to approach others. On the other hand, our life is itself a narrative, it has a beginning and an end, and it is this “beginning” that provides our “personal identity”.

When reading Never Let Me Go, one of the aspects that most stands out is the connection that the main character reveals with the past, how her life is made of a constant reminder of childhood and how it is in this childhood that she seeks for answers for her current challenges. If we read Mary Shelley's classic Frankenstein, we also become aware of the monster's need to know its origins, which is why he seeks Frankenstein's approval so much. What connects the monster of Mary Shelly and the clones of Kazuo Ishiguro is the absence of a beginning, of something that gives them the basis to live, that gives them their identity. Frankenstein's monster is not loved by its creator and has to educate himself, the Never Let Me Go clones do not even have a creator and their childhood does not provide answers about their identity, because those who controlled it, always sought to deceive them.


Hence, my point is that in creating non-human characters, to bring them closer to us, the authors made them story-tellers or at least engendered in them this need, revealing that this is one of the fundamental human characteristics. Therefore, I will explore concepts such as memory, imitation, the importance of a creator, the need for a purpose, the inevitability of loss and the relevance of Never Let Me Go being a post-modern novel, as it uses tools like metafiction and alternative history.

albertoarruda

É como se estivéssemos num inferno,

onde só podemos sonhar & impedidos

por um tecto de chegar ao céu.

Ludwig Wittgenstein, Cultura e Valor

Os telhados são a parte mais concisa de uma casa. Não foram feitos para pôr antenas, como as mesas para pôr copos, nem para ter chaminés, como as paredes para ter portas.

E apesar de tudo isto, foi precisamente em tectos e telhados que Wittgenstein pensou em 1937, quando num momento mais à Pascal do que este alguma vez seria capaz de admitir, comparou o seu inferno especulativo a viver sob um tecto. De facto, a imagem é surpreendentemente produtiva: Descartes no seu forno, Montaigne na sua torre, Freud no seu gabinete.


Tal como seria de esperar, o romance familiar de Wittgenstein acaba por emergir da sua prosa de maneira desconcertante. Este apercebeu-se de que muitas das vozes à sua volta não exaltavam uma certeza sem a qual já não se conseguia imaginar. Uma certeza que está longe do simples mérito próprio, talvez por ser recebida.


Certeza era então, no seu caso, e suspeito que no nosso também, algo longe de circunstâncias, – ou se preferirem, o contrário de contingências. Certeza é aquilo que vivemos em determinadas circunstâncias, mas sem ser abalada por determinadas contingências.


E agora, mais do que em muito muito tempo, a nossa certeza deve estar muito perto da nossa esperança. (Todos nos esquecemos de que a esperança é uma virtude – pensem nas dificuldades de São Paulo!) Ocasionalmente, todos nos esquecemos de que a nossa certeza será vivida, se não por nós, então pelos nossos; no futuro. E no futuro, sem ser por debaixo de tectos ou telhados, haverá um caminho que só poderemos percorrer juntos.

Aliás, esta dependência foi evidente para Courbet quando pintou o seu reencontro. À data, gozado por muitos por sobrepor aquilo que não passava de pathos seu a uma realidade que fantasiou, Courbet pintou a certeza do caminho que ainda tinha pela frente sem se esquecer dos seus amigos. E assim, para nossa surpresa, conseguiu algo muito mais difícil do que aquilo que pode parecer: pintar o seu reencontro com todos os seus amigos, tanto à partida, como à chegada.


Gustave Courbet, La rencontre, 1854


Mais São Tomás
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