Estamos de quarentena. Estamos na Quaresma. Ver um filme não pode ser uma frivolidade. E, no entanto, muitos dos filmes que integram aquele período da história do cinema a que damos o nome de cinema clássico americano, como On the Waterfront, poderiam ser acusados de superficiais, indignos de serem vistos em tempos como este. Essa acusação seria, contudo, uma superficialidade, antes de mais porque ignora o peso moral da sofisticação humana que o discreto mas virtuoso trabalho de câmara, a rapidez e espirituosidade dos diálogos, a economia narrativa e o espectro emotivo do cinema clássico revelam. Depois, porque reduziria ao mesmo o que não é de todo igual.
A década de 1950 assistiu a uma lenta mutação do cinema clássico de Hollywood, com os seus mais antigos realizadores a evocar à superfície o que se escondia na profundidade do homem e daqueles tempos do pós-guerra. Pense-se na obra-prima de John Ford, The Searchers (1956). Assistiu também ao surgimento de uma nova geração de cineastas, que viriam a influenciar indelevelmente tanto o cinema europeu da Nova Vaga como o próprio cinema americano do futuro, a New Hollywood da década de 70. Realizadores como Elia Kazan, Nicholas Ray ou Sidney Lumet começaram as suas carreiras num ecléctico circuito artístico, movendo-se entre o teatro e o cinema, durante a Grande Depressão. Esta formação decorrida no meio teatral e em tempos economicamente conturbados, marcados pelo recrudescer da consciência política e social, influenciou o estilo e a temática desta geração que criou as suas obras mais relevantes nos anos 50. De Elia Kazan vieram A Streetcar Named Desire em 1951, On the Waterfront em 1954 e East of Eden em 1955, Nicholas Ray ofereceu-nos In a Lonely Place em 1950 e Rebel Without a Cause em 1955 e Sidney Lumet estreou-se com a sua obra-prima 12 Angry Men em 1957.
Em On the Waterfront de Elia Kazan encontramos muito do que caracterizou os filmes desta geração, aspectos técnicos que contribuíram tanto para o cinema subsequente como para o sentido último da obra. A experiência teatral de Kazan, a sua criação do Actors Studio, responsável pela introdução do famoso Method Acting, e a sua preferência por actores desconhecidos – pelo menos até trabalharem com ele –, mais maleáveis ao seu ensino, tornou-o um realizador forte, acima de tudo, no que se chama a direcção de actores. Kazan apostou tudo na comunicação sincera e autêntica do drama interior, levando actores como Marlon Brando, James Dean, Eve Marie Saint, Warren Beatty ou Karl Malden, cujas carreiras lançou, a deveras sentirem a dor que fingiam ter. Este drama esteve sempre associado a preocupações de carácter moral e social que Elia Kazan, um turco de origem ortodoxa que veio para os Estados Unidos aos quatro anos, herdou tanto da sua história familiar de emigração como dos tempos de regressão económica em que cresceu.
Como não podia deixar de ser, a insistência sobre a interioridade humana e a dramaticidade das relações de que os actores são o veículo obrigava ao uso de planos de câmara mais próximos, capazes de mostrar os rostos onde se espelham os conflitos da alma. Uma das grandes novidades trazidas ao cinema por realizadores como Kazan ou Lumet foi precisamente esta substituição da predominância dos planos de conjunto, normalmente usados para captar a acção (plano geral, plano americano), pelos planos de peito ou grande plano que mostram os mil e um pequenos movimentos da cara onde se reflectem o pensar e sentir dos homens. Embora o recurso abundante a planos mais aproximados não fosse inédito - basta lembrar a Paixão de Joana d'Arc (1928), de Carl T. Dreyer - nunca foi prática comum durante a primeira metade do século XX. Esta é uma mudança introduzida pelos cineastas das décadas de 50 e 60, muito associada tanto à necessidade de tornar visível o tipo de acção e conflito próprios do teatro (vários destes filmes resultaram da adaptação de peças) quanto ao desejo de usar o cinema para falar daquele tipo de questões que sempre estiveram no centro da arte, desde a tragédia grega. De usar o cinema para narrar a história da consciência humana.
Isto traz-nos ao cerne de On the Waterfront, filme que, juntamente com East of Eden, coloca em palco o problema do mal e o drama da conversão. Sabemos que o mal não está nas coisas mas esconde-se no coração, que o rosto de Marlon Brando revela e a câmara de Kazan perscruta. Sabemos que a conversão, vivida primeiro no interior de Terry Malloy e depois na comunidade de estivadores que com ele trabalham no cais, é a única história que interessa contar. Sabemos por isso que não há, para o tempo de Quaresma passado em isolamento social, cinema mais apropriado do que o de Elia Kazan.
Terry Malloy habitava este mundo como um animal na caverna, levado como todos pelo “love of a lousy buck”, preso na nostalgia do “somebody” que poderia ter sido. Mas a vida compadeceu-se desta pobre besta e as circunstâncias assumiram uma face impossível de destituir. Malloy descobre que fora inconscientemente cúmplice da morte de um rapaz inocente, no mesmo instante em que encontra a bondade encarnada na pessoa da sua irmã (Eve Marie Saint), cujo esplendor iluminava até ao limite da dor o mal que ele era e fizera. É o vislumbre de uma outra vida que lampeja e acorda nele uma voz que o inquieta, arrancando-o da medida mesquinha com que se contentara e em que se deixara adormecer. Só agora há uma voz a que a voz do Pe. Barry (Karl Malden) pode dar voz:
- I’m not asking you to do anything. It’s your own conscience that has to do the asking.
- Conscience? That stuff is gonna drive me nuts.
No final, sob o olhar do Pe. Barry e de Edie, a porta fecha-se atrás de um Terry Malloy livre, capaz de libertar a comunidade de estivadores que o segue na retaguarda. Fica a percepção de um eu que nasceu, fruto de uma certa resposta à provocação da dura realidade que enfrentou, suscitada e sustentada pelos outros eus que o amaram a ele e à verdade. Um eu que atravessou as circunstâncias aceitando o desafio de perder a vida ("If I spill, my life ain't worth a nickel") para ganhar a vida ("And how much is your soul worth if you don't?"). Para um eu assim não há cavernas. Vive bem atrás de quaisquer portas, no interior de qualquer lugar.
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