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António Arruda

Ética takeover - O Cavaleiro da Aurora

O CAVALEIRO DA AURORA

Da autoria de Lourenço da Cruz Lousada Fonseca Baptista


I

O dia ia a meio. O sol raiava com todo o seu esplendor e ardor, incandescia toda a vasta planície, e iluminava até a sombra das árvores da floresta que lhe era adjunta. Sobre a planície, milhares de homens ardiam de frente uns para os outros, e incontáveis quantidades de metal e bronze reluziam ferventes. Uma chama estava desenhada nos olhos de cada um deles; não apenas devido às presentes condições meteorológicas, mas refletindo sobretudo algo que tomava lugar nas profundezas mais íntimas dos seus seres: uma convicção real, séria, inabalável, inteiramente incontornável, de que tinham, diante de si, o Inimigo.


Do lado aparentemente mais vantajoso, oposto à floresta, favorecido pela altura de uma prolongada colina, reuniam-se os Invencíveis Soldados do Reino. Fileiras e fileiras de homens se aglomeravam, revestidos de malhas de ferro, armados com espadas e lanças, arcos, escudos. Todos os cavaleiros estavam reunidos sob uma única divisão implacável, ao lado dos homens a pé, constituída por enormes cavalos de guerra, montados por experientíssimos combatentes, esplendidamente bem-treinados e já endurecidos da guerra. Corria por todos os arredores do Reino que as suas espadas jamais cessavam de ser afiadas, e que ver sequer uma à proximidade de cinco homens significava morte certa para quem estivesse a pé, e queda segura para quem estivesse também montado. Dizia-se mesmo que os próprios cavalos reconheciam e odiavam os inimigos, e que um mero toque dos seus cascos em andamento bastava para se cair derrotado, tal era a sua força.


Um grupo menor, contudo, que albergava os Nobilíssimos Comandantes, galopava agora diante dos soldados. Na sua liderança, acelerava um único, que todos os outros seguiam ligeiramente atrás, e a cuja passagem todos os homens se erguiam da prostração para o aclamarem, encorajados. Era o Príncipe de Todo o Reino, aquele que seria o herdeiro ao trono, e a quem competiria toda a administração territorial, económica, política, e militar, após a passagem de seu pai, Sua Majestade o Rei. Toda a vida fora educado em preparação para esse momento, e, desde os seus vinte anos de idade, já então um jovem forte e capaz, fora apontado Vice-Comandante Supremo dos Invencíveis Soldados do Reino pelo pai, naturalmente, o Comandante Supremo. Era o Príncipe, porém, quem liderava e acompanhava os exércitos na frente de batalha, quem os guiava nas vastas mobilizações, por semanas e semanas, através de montanhas e vales, durante os frios gélidos do Inverno ou os calores abrasadores do Verão, como neste dia. Todos quantos combatiam pelo Reino eram motivados pela sua presença; por onde quer que ele passasse, os soldados bradavam longas-vidas ao Rei e a ele mesmo.


Os inimigos, neste dia o último exército organizado da pátria que o Reino nesta campanha ocupava, tremiam de medo ao ver a sua galopada confiante de mão erguida e ao escutar os brados bélicos dos soldados; no entanto, permaneciam estranhamente heroicos. Alguns habitantes da última aldeia desocupada, que se situava precisamente atrás da floresta anexa ao campo de batalha, bem conscientes do destino que se lhes seguiria após uma anexação, avisados por algumas escassas cartas de familiares e amigos que haviam sucedido em alcançá-los, formaram guerrilhas e juntaram-se, bravos, ao exército organizado. Alguns suplicavam aos seus comandantes, de uma maneira muito diferente dos gritos de destruição provenientes do outro lado, que fossem enviados para as primeiras linhas – queriam enfraquecer o inimigo, diziam, para poder permitir aos soldados disciplinados desfechar o golpe final que conduzisse à vitória. Preferiam morrer a defender quem os tentava salvar, do que a revoltar-se em vão contra a ‘mórbida ocupação

tirânica’, que, afirmavam sem uma sombra de dúvida no rosto, acabaria por lhes tirar a vida na mesma – ainda que não lhes terminasse a existência.


No seu regresso em sentido contrário ao da partida na galopada, o Príncipe avançava agora em direção ao centro de toda a concentração armada, posicionando-se alguns cascos à sua frente. Tendo já animado todos com a sua incomparável figura, unicamente inferior à do Rei e da Rainha, parava agora para declamar um discurso final, que acendesse a fagulha da batalha e ateasse decisivamente a chama no olhar de toda a massa de guerra. As suas palavras foram, sem o acréscimo ou a retirada de uma vírgula, as seguintes:


– Invencíveis Soldados de Todo o Reino! Ouvi-me agora, e tende bem presente o que vos digo! À frente dos vossos olhos, tendes homens dignos de repúdio e escárnio… Lutam por uma causa perdida, desperdiçam em vão as suas já fracas forças, pois espera-os um batalhão jamais vencido… Os seus cidadãos, escravos dos seus próprios interesses egoístas, filhos de uma mentalidade ignóbil, proveniente de fracos, e geradora de fracos, procuram eliminar-vos, para que possam continuar o seu legado de miséria, de egoísmo, de animalidade… Não compreendem os grandes desígnios do Reino! Não são capazes de vislumbrar as altíssimas ideias de Sua Majestade, nunca serão, porque estão acorrentados a si mesmos! A sua inteligência está apagada, o seu espírito está corrompido, por tantos anos de servidão sob a sua própria alçada! Somente buscam alimento, somente procuram conforto em superstições de enfraquecidos inúteis… São semelhantes a cães sem dono! Não buscam poder para a sua nação! Não desejam fama e glória para o seu povo! Não querem o melhor que podem dar! Por isso dormem, pacíficos, nas suas casas, nas suas aldeias; passeiam-se débeis pelos seus campos; sorriem falsamente uns para os outros! Pensam que vivem bem… Acreditam que a paz lhes traz a satisfação… Mas o seu espírito já há muito morreu, a calma já há muito deteriorou o seu corpo! Nunca viram a libertação… e recusam-se a vê-la! Contra esta infâmia, meus homens, apelo-vos: lutai! Erradicai as suas almas errantes, queimai os seus corpos podres, ponde um fim à sua miserável existência! Mostrai-lhes… o Desígnio! – Concluiu, exclamando – Pelo Reino, e pelo Rei!


Os brados de guerra que se ergueram após o seu discurso foram inumeráveis, e altíssimos. Se o inimigo já vacilava em medo, agora, ao ouvi-los, por pouco não caiu para o lado, antes sequer de qualquer contacto – talvez exatamente pela certeza que tinham.


Várias e longas fileiras de arqueiros do lado dos Invencíveis Soldados do Reino deram passos em frente, posicionando-se, e desferindo uma fatal e duríssima chuva de setas. Quatro foram os ataques que lançaram; um quarto foram os homens que tombaram junto à floresta. Seguiu-se um avanço geral dos homens a pé, veloz e forte enquanto corriam pela planície gritando; a extensão das hordas era tal que começavam já a cercar o inimigo. Os cavaleiros não demoraram a ultrapassá-los, galopando à carga e emitindo, com o som dos cascos a irem de encontro à terra, um ruído maior ainda do que o dos gritos dos soldados. As linhas inimigas, enganadas pela saída primeira dos homens a pé, tinham procedido também ao seu avanço; porém, quando repararam no avanço dos cavalos, era já tarde, encontrando-se a metade da distância inicial da horda oposta. Redirecionaram a sua própria cavalaria, e baixaram-se os homens a pé, apontando os compridos troncos de madeira afiada para o ar. Os cavalos inimigos, não obstante, não hesitaram por um momento: o seu tamanho permitiu-lhes saltar por cima dos troncos, aterrando na cabeça das primeiras linhas, e carregando sobre os restantes homens. Entretanto chegavam os homens a pé, perfurando com os seus gládios os homens que ainda não tinham quedado, e acabando de vez com os poucos que se reerguiam capazes. Os cavaleiros regressaram então no sentido inverso, com as espadas desembainhadas, cortando as cabeças dos que não tinham sido atingidos.


A aflição do lado dos inimigos do Reino era grande, muito grande; enorme foi também a quantidade de sangue derramada. Num curto espaço de tempo, todos os soldados que inicialmente permaneciam heroicos à entrada da floresta tinham sido derrotados. Os poucos que não haviam perecido fugiram para a densidão arbórea, onde foram rapidamente perseguidos e executados pela cavalaria. Não se tinha ainda o sol movido muito para além de onde estava no início da batalha quando os Invencíveis Soldados do Reino alcançaram a aldeia e a ocuparam.


Foi deixado um pequeno destacamento para a consumação da ocupação. O resto do exército pôs-se em marcha em direção à Capital do Reino, para dar a notícia da derrota final da nação inimiga a Sua Majestade. Regressaram pelo campo de batalha em que haviam sido vitoriosos.


II

Após um longo ciclo e meio da lua de caminho árduo, o exército chegava finalmente à Capital do Reino. Marchava triunfante pelas ruas da cidade, tocando pomposas músicas de vitória e agitando o chão à sua passagem. Seguiam em direção ao Palácio do Rei. Era lá que Sua Majestade residia permanentemente, e era a partir desse local que realizava toda a incansável administração do Reino.


Quando os soldados o alcançaram, pararam, aguardando; o Príncipe saiu da sua liderança e subiu os vastos e altos degraus. Os imponentes portões de madeira do Palácio estavam abertos para ele, o longo tapete escarlate jazia desde a entrada sobre o mármore branco e trabalhado do chão esperando os seus passos. Ao fundo, a meio da escadaria que conduzia ao andar superior do palácio, o Rei, seu pai, observava-o, sorrindo de glória. Recebeu o Príncipe com um forte abraço, e, de seguida, convidou-o a subir, guiando-o pelos ricos e prolongados corredores até à Sala do Trono. Era da varanda de pedra a que esta dava acesso que proclamava e discursava ao povo e aos seus exércitos, era à grande sala que convocava os seus Ministros da Administração e os Nobilíssimos Comandantes dos Invencíveis Soldados quando desejava conversar com eles sobre assuntos com relevância.


O Príncipe tomou a palavra primeiro, dirigindo-se a Sua Majestade, pausadamente, com confiança:

– Meu pai, as infâmias dos Inimigos do Reino foram mais uma vez castigadas; das suas hordas bárbaras já não resta um só homem de pé. A vossa glória e a vossa vontade foram, novamente, vitoriosas; expandiu-se totalmente o vosso Desígnio a este povo servo e incapaz. A campanha está terminada.


O Rei respondeu-lhe, com o mesmo sorriso a meia-haste que lhe era característico ao ouvir palavras como estas:

– Meu filho, cumpristes vós, como esperava, a tarefa que vos havia confiado. A vossa liderança mais uma vez honrou-me, e a vossa lealdade brotou meritoriamente em maior fama e superior glória. Orgulho-me dos vossos feitos e da minha descendência; o Reino provou mais uma vez a altivez do Desígnio.


O filho retorquiu-lhe, acalorado pelas suas palavras, e profundamente convicto do que sucedia no seu coração:

– Sempre é para mim uma verdadeira honra servir-vos, pai. Não busco mais, não ambiciono mais, do que a concretização da nossa grande ideia. A minha missão está cumprida, e compete-me agora aguardar as vossas novas ordens.


Com efeito, era tradição, como recompensa pelas honrosas vitórias, que Sua Majestade concedesse ao Príncipe alguns dias de precioso repasto e descanso, passados nos bosques e vales longínquos da Capital, no interior do Reino. Partia sempre com uma escolta de vinte Guardas Reais ao seu cuidado, na rara eventualidade de se vir a encontrar algum traidor pelo caminho. Contudo, o Príncipe tinha, sem exceção, uma vez nas proximidades do local da caça, o gosto e o costume de ordenar à sua escolta que ficasse para trás, permitindo-lhe a ele caçar, nos silêncios mais isolados, sozinho. Pedia-lhes sempre para permanecerem à entrada de uma floresta, ou no sopé de uma montanha, e seguia a partir desse ponto unicamente com o seu cavalo, a sua espada, e o seu arco, a passo, penetrando no mistério dos bosques ou percorrendo o serpenteio dos vales. Foi para o libertar numa destas desejadas expedições que o Rei prosseguiu, em tom paternalista:

– Até às minhas ordens, como sabeis, tendes uns irretiráveis dias pela frente. Podeis agora partir, como sempre fazeis, para a vossa caçada. Os Guardas esperam-vos à saída do Palácio, junto aos Invencíveis Soldados.


O Príncipe agradeceu, despediu-se com cortesia e agrado e retirou-se. Por sua vez, dispensou temporariamente os homens do exército, os quais regressaram às suas casas ou às suas terras, até à próxima lua cheia (a última tinha sido justamente há muito poucos dias), tempo que seria também o da sua própria expedição.


III

Treze dias depois, o Príncipe do Reino tinha já atravessado a cavalo, na companhia dos guardas, montanhas elevadas, planícies intermináveis, e um pequeno rio, o qual permitia a sua travessia quando se ia montado. Chegavam agora à orla de uma vasta floresta, com árvores da altura de gigantes, troncos da grossura de cinco homens juntos. O Príncipe já ali tinha ido numa outra ocasião caçar, à semelhança deste dia, depois de ter posto fim à existência de uma nação inteira. Este lugar era, para ele, poder-se-ia dizer, como que a ‘Floresta do Mistério’; por todas as suas dificuldades e particularidades, entrar e caçar no seu interior era um verdadeiro desafio, apenas à altura dos aventureiros mais corajosos: dela conhecia-se pouco entre as gentes, pelo que trespassá-la era como que navegar por mares ignotos; nela pouca luz existia, salvo nalgumas poucas regiões específicas, que o Príncipe não sabia de cor onde se situavam, pelo que a maior parte da caça era feita em penumbra oculta; nas suas profundezas um grande silêncio pairava, pelo que, com frequência, um grande medo e suspense cercava quem se atrevia a explorá-la. Como sempre fizera, então, indicou aos guardas que ali ficassem, pacientes e vigilantes – não deveriam entrar senão se ele não voltasse até ao pôr-do-sol. Sob o calor confortável do fim da manhã, assim, entrou, montado, a passo.


Tudo à sua volta transpirava, de facto, profundo mistério. O canto dos pássaros pousados no topo das árvores era melódico, como todas as vezes o é, mas, aqui, calmo; era como se até eles estivessem conscientes da densa impenetrabilidade que os rodeava. Saltavam, também, de um ramo para o outro, mas sem a agitação habitual; tudo era feito com uma harmonia e uma majestade indescritíveis. O próprio cavaleiro tinha que fazer bom e perspicaz uso da disciplina incutida no seu animal – pisar uma folha ou um galho que fosse em falso, ou acelerar um pouco mais do que o devido, poderia significar uma séria rutura com toda a calma do local. Isso, naturalmente, poderia ter como consequência o mais indesejado em toda a expedição: que o animal mais raro que se escondesse nas profundezas mais ocultas da floresta fosse despertado, avisado, para a presença de um sujeito estranho e inimigo à sua existência. Quem sabia, afinal, se todos os seres ali residentes não trabalhavam em conjunto, não cooperavam entre si para o mútuo benefício uns dos outros, comunicando possíveis ameaças ao menor sinal? Quem sabia, com efeito, se não existiria um animal guardião de todos – à semelhança da consideração que o Príncipe tinha do seu próprio pai –, mais potente que todos os outros já vistos, mais feroz, mais ágil…? Talvez até as árvores camuflassem olhos seus, e fosse cada uma delas a guardiã da sua própria casa!... Nada, realmente, se sabia deste bosque. Nem mesmo quem já lá alguma vez entrara (se alguém).


O Príncipe foi, com tudo isto, pela primeira vez, invadido por um súbito, um estranho, um ignóbil pensamento: neste lugar… o Rei não mandava. Neste lugar… o Desígnio não regia. Aqui, nada nem ninguém reportava a Sua Majestade. Este era talvez o único sítio em todo o Reino, o único local que na sua já avassaladora extensão territorial estava contido, que, de facto, não lhe pertencia. Não se podia, pura e simplesmente, alterar nada ali, sem que todos os Invencíveis Soldados fossem mobilizados para cercar a floresta (bastariam sequer eles para isso?!).


Era verdadeiramente um pensamento que tomava conta da totalidade da sua humanidade, e eventualmente o único que o assustava. Ali, ele não era Príncipe. Porém, por alguma vaga e nunca antes vista impossibilidade, as coisas não cessavam de parecer, no mínimo… relativamente organizadas. “Belas”, “francas”, “fascinantes” seriam palavras muito fortes e absolutamente indevidas para se referir a um local que não se submetia ao Desígnio, pensava. Mas frustrava-o que não lhe viessem outras à imaginação.


Justamente enquanto se detinha neste pensamento, que o desviava do propósito original e nobre de trazer um troféu animal às costas, deparou-se com algo (pudera) seriamente estranho. Parou por um momento, pois não sabia o que fazer. Vergou o corpo, sobre a sela, para observar melhor, procurando perceber o que via à sua frente. Não estava numa clareira, pelo menos pelo que parecia, mas uma zona alva de iluminação estava diante de si. ‘O que é isto?’, pensou. Aproximou-se lentamente, o mais sorrateiramente que era capaz – nunca como agora se deu conta de que o seu cavalo era realmente disciplinado, e de que ele próprio era um grande cavaleiro; nem mesmo na guerra. À medida que a passada o aproximava da região, podia ver com mais clareza que a luz assumia um único ponto, uma única faixa vertical estreita entre as árvores. ‘Será um tronco? Não pode ser. Ou melhor, pode. Não, não pode, realmente, mas esse vocábulo não existe aqui…’. O seu pensamento encalhava num paradoxo… ‘Bem, admitamos, talvez seja um tronco que albergue uma qualquer surpresa’. Mas, quanto mais se aproximava, nunca perturbando a quietude do local, evidentemente, a faixa mostrava a sua altura não gigantesca, e distanciava-se da aparência de um tronco. De repente deu-se conta… ‘Não pode ser!’, e o paradoxo voltou. O que tinha diante dos olhos era uma figura. Mas não era uma figura animal. Via, de facto, uma figura humana.


Parou, imobilizado. Agora estava perto – o mais ínfimo ruído poderia afugentar a figura. Ainda assim, arriscou. Apeou, e aterrou o mais silenciosamente que já alguma vez tinha tentado na erva. Um mero toque numa folha seria determinantemente fatal. Caminhou sobre os bicos dos pés, procurando conciliar o seu olhar entre a atenção ao chão e a curiosidade na pessoa diante dele… Esta tinha cabelos longos, e loiros… Era uma senhora! O que faria uma donzela assim, no meio do bosque, sujeita a tanta incerteza e perigo?! Mas estes pensamentos eram rapidamente apagados, lentamente, majestosamente… porque quanto mais perto chegava, mais era avassalado pela delicadeza da figura feminina… Agora percebia toda a alvura – a senhora estava coberta por um preciosíssimo vestido branco, que como que emanava luz… De costas para ele, permanecia, tranquilamente, perfeitamente, imóvel.


O Príncipe estava, neste preciso momento, a não mais de quatro passos da senhora. Foi então que ela se virou de súbito… e revelou todo o seu esplendor. A alvura já não era exclusiva ao vestido, mas estendia-se agora ao rosto. Este era ornamentado pelos seus finíssimos cabelos loiros, que repousavam sobre a sua cabeça emanando duas delicadas faixas para trás, e reunindo-se na retaguarda como que concluindo um círculo embelezado. O círculo assemelhava-se a uma tiara, puramente feita de singulares cabelos dourados, e a imagem era completada por uma branca rosa pura, que assentava sobre o princípio de uma das faixas. A face era rosada, como que conferindo um tom de humanidade a tanta alvura e aparente divindade, mas contribuindo na mesma para o embelezamento geral; os lábios eram rubros, de vida, não deixando porém de manter a finura e a elegância; os olhos eram castanhos, em concordância com as árvores da floresta, de um tom espelhado, claro, mas não transparente, da cor da madeira mais desejada. Tudo isto conferia juventude; não tinha diante de si uma antiga senhora, mas uma rapariga: não imatura, nem já com sinais de envelhecimento, mas precisamente no pico de toda a sua juventude.


Seria inteiramente vão procurar descrever o que tomava lugar nas entranhas da humanidade do Príncipe; não seria possível dizer mais nada, senão isso mesmo: descobriu a existência de entranhas, conheceu o significado de profundidade, viu-se a si mesmo.


Cortês, mas naturalmente sobretudo estupefacto, deixou que a jovem rapariga iniciasse o diálogo primeiro:

– Quem sois vós, que ousais entrar nesta floresta?

A sua voz era belíssima, melódica, calma: doce como o mel, encantadora como uma camélia. O que perguntava não era em tom de guardião há muito adormecido, perturbado com a presença de alguém que se atreve a desafiá-lo; mas em sinal de profunda curiosidade, e cada palavra sua brotava alegria, musicalidade, vida.

– Como não sabeis quem sou? Sou o Príncipe de Todo o Reino.

A melhor palavra para caracterizar a sua resposta não seria nem indignação, nem prontidão, mas antes algum receio, alguma incerteza do desconhecido, e espanto em abundância.

– Não perguntei se governáveis, nem que cargos ou títulos detínheis; interessei-me exclusivamente pelo vosso nome, e por quem sois. – retorquiu a jovem rapariga.


A admiração que dominou o Príncipe após esta afirmação foi inexplicável. Não apenas por não estar acostumado à pergunta, ou por esta não ser usual, mas porque verdadeiramente se apercebeu de que não era capaz de recordar-se da última vez que alguém lhe tinha perguntado (chamado então talvez jamais tivesse acontecido) pelo nome. O seu próprio nome. Que nome era o seu, na verdade? Quem era?


Demorou alguns instantes a lembrar-se. Mas, quando isto aconteceu, disse, com gravidade:

– Sou Ódio, filho de Ideológico, filho de Estagnado, da casa de Há-Muito-Só.

A donzela sorriu genuinamente, e inquiriu alegre:

– E o que vos traz aqui, Ódio?


A sinceridade com que ela se lhe dirigiu, bem como o ainda presente choque da pergunta feita por ela, fez com que o Príncipe não protestasse, não se importasse sequer, com a ausência de um título honorífico na referência a si mesmo.

– Venho caçar, minha senhora – respondeu ele –; procurava um animal adequado a um banquete para me servir de alimento a mim e aos meus Guardas, e outro nobre com uma cabeça, feições e porte dignos de serem ostentados no Palácio de meu pai, na Capital do Reino.


O sorriso da donzela não perdia a intensidade por um momento, e a tranquilidade na sua fala não diminuía.

– Se são animais que procurais, atrás de mim e para o meu lado esquerdo os tendes. Aproveitai, que a floresta está a esta altura repleta deles, à medida que se nutrem dos frutos e dos animais mais requintados, e se preparam para adormecer na calma da tarde…


O Príncipe não sabia o que fazer. Desejava perguntar-lhe o nome, ardia por saber quem era esta figura que à sua frente assim aparecia tão bruscamente, mas ao mesmo tempo tão maravilhosamente, contudo, devia continuar, caso contrário, não teria tempo de regressar antes do pôr-do-sol. Pensou que, de facto, perguntar o seu nome seria indelicado; a rapariga apenas o tinha feito porque, como pensava o Príncipe nos instantes que antecederam este encontro, ele era, nesta ocasião, o intruso. A única coisa que foi capaz de reter acerca da sua identidade foram as palavras que se seguiram à única coisa aceitável que lhe ocorreu perguntar:

– Não conheço de onde vindes, nem para onde ides, minha senhora; haverá, ainda assim, algum local ao qual vos possa acompanhar? Algum caminho pelo qual vos possa escoltar em segurança?

– Para já, o meu lugar é aqui, junto a estas árvores.


Não pôde ele responder mais nada. A conversa, por mais custoso e árduo que fosse reconhecê-lo, tinha chegado a um fim. Tentar ultrapassá-lo implicaria, obrigatoriamente, incorrer numa ‘odiosa violação dos ritos de conversação devidos’. A única coisa que lhe restava fazer era agradecer as indicações, fazer uma ligeira inclinação, e retirar-se para onde a inimaginável senhora lhe tinha sugerido que fosse.


Assim foi. À chegada junto dos guardas, poucos momentos antes de o sol se começar a pôr, trazia na garupa do seu magnífico cavalo branco um gordo e imponente urso castanho para o Palácio, e um belíssimo veado para o seu jantar. Seguiram, a galope, à medida que o dia ia terminando, pelo caminho que tinham percorrido à vinda, até pararem, pouco depois do anoitecer, junto ao rio que tinham atravessado. Aí montaram as suas tendas, prepararam o seu manjar, comeram, e assentaram para o descanso noturno.


IV

Nessa noite, contudo, o Príncipe não dormiu até pouco antes do alvorecer. A sua mente não parava, revolvia incansavelmente à volta do sucedido, e era impossível escapar às perguntas que o invadiam sobre o que vira.


Quem era esta jovem senhora, belíssima e profundamente maravilhosa? O que queria? Porque estava tão alegre? E ele, porque estava tão surpreendido, mas ao mesmo tempo radiante também? Como seria de esperar, já tinha encontrado muitas senhoras e raparigas ao longo de toda a sua vida, algumas das quais muito bonitas; mas nenhuma era como esta! Não só em beleza esta superava, mas em tudo quanto ao seu redor pairava… Jamais alguma das senhoras com que se relacionava, ou até mesmo qualquer uma que já tinha visto, sorria daquele modo… tamanha sinceridade! Tamanha genuinidade! À sua volta, todos os sorrisos eram de formalidade e cortesia, ou de glória e ambição, como o de meia-haste de seu pai; mas este, de que era feito? O que o suportava, o que o constituía? Nunca tinha visto algo assim! Teria sido a sua própria presença a despoletar tal reação? Já estaria a donzela contente? Quiçá os dois juntos? O que era isto, o que era isto, que o distraíra por momentos do seu nobre objetivo da caça, e da sua confiante recordação da vitória?!

De onde vinha esta senhora? Para onde ia? “Para já, o meu lugar é aqui” – mas que conversa era esta? Nunca tinha ele dito semelhante coisa, nem mesmo na guerra! Aí era onde mais pensava no que sucederia a seguir, no que teria de fazer a seguir, na estratégia que teria de executar para a vitória, na glória posterior que adviria ao Reino! Mas, ali, havia algo diferente… “o meu lugar é aqui” … falava-se do presente, falava-se do agora, tinha-se ademais uma certeza; e tudo com uma vivacidade, ainda que harmoniosa e tranquila, maior do que a que ele próprio exibia em combate… O que tinha acontecido?


Enquanto assim pensava, deitado na sua tenda, não resistiu ao ímpeto de se levantar. Ergueu-se o mais silenciosamente que pôde, e dirigiu-se ao seu cavalo. Montou e, sorrateiramente, enquanto os guardas dormiam, saiu a passo ao longo do rio.

As perguntas continuavam a revolver… Lembrava-se agora de como ela lhe tinha perguntado o nome, de como ele próprio se havia lembrado do seu nome… Mas que espanto! Como não quereria ela saber de “cargos ou títulos”, porque não lhe interessava que fosse ele o Príncipe de Todo o Reino? Só fora da pátria é que o tratavam assim… Seria ela uma traidora? Mereceria ela a execução? Não podia! Jamais! Quem seria capaz de matar um ser assim, de perturbar sequer uma figura como aquela? Ele próprio arruinaria quem em tal pensasse! Mas como podia ser? Se não era traidora, o que era; se de doença e fraqueza de espírito não era feita, o que a constituía?


Percorria agora um longo vale, ao qual a margem do rio o tinha levado, que sibilava por entre a imensidão de duas grandes montanhas; dele emanava uma brisa noturna rejuvenescente. Apercebeu-se de que nunca tinha olhado para uma montanha, e reconhecido o seu tamanho, como agora, e nunca se tinha sentido verdadeiramente pequeno ao lado de uma. Mas que imponência! Mil homens não chegariam para a arranhar, dez mil não bastariam para a mover… E o vale, jazendo ao luar, o que fazia ali? A que vasta e deserta planície conduziria? Habitaria ali alguém? Viu a lua, já a preparar-se para iniciar o seu crescimento, que iluminava para ele a imagem – como tudo era belo! Deu por si a pensar, ele, homem da guerra, impiedoso, implacável defensor do Desígnio, em tudo quanto o rodeava, sob a forma de uma curta poesia:


‘O que é um batalhão de Invencíveis,

Ao lado de todo este intransponível?

O que são tambores e cargas,

Perante este ensurdecedor silêncio?

O que é uma vitória esmagadora,

Junto a este pisador gigante?’


Por fim, ao tornar a olhar para a lua, lembrou-se do prazo limitado da sua viagem. Este preocupou-o, precisamente por o lembrar de tudo para o que teria de voltar, acerca de cuja glória, fama e propósito tinha acabado de refletir.


Uma coisa, porém, era certa. Tinha de voltar àquele bosque. Precisava de procurar aquela face outra vez, causadora de tanta agitação e perturbação. Precisava de respostas, e não era capaz de pensar noutro lugar onde as obter. Virou-se para trás, e trotou novamente ao longo do rio em direção às tendas. Decidiu: na manhã do dia seguinte, desculpar-se-ia aos Guardas dizendo que muita fora a rara caça que vira durante a tarde, e que desejava regressar às profundezas da vegetação para ver e trazer outros animais ignotos. E assim foi.


V

Perto do momento em que o sol se aprontava para alcançar o seu pico, lá estava ele, novamente, desaparecendo sozinho pela orla da floresta, deixando os guardas no mesmo ponto do dia anterior. Estes tinham ficado algo surpreendidos – não era hábito do Príncipe voltar atrás a alguma coisa que fosse, regressar para terreno ou evento já ‘superado’. Normalmente, tudo era resolutamente decidido com antecedência na sua mente, e não havia o mínimo espaço para uma consciência de novidade. Era invulgar ter dito que “a raridade e quantidade da caça o apanharam desprevenido”; nada a ele o apanhava alguma vez desse modo.


Mas, com efeito, lá estava ele, nesse final de manhã, penetrando a densidão arbórea; “superação” era talvez o único nome que maior falsidade continha no que dizia respeito à sua relação com aquele lugar.


Manteve, como era devido, a moderação na velocidade do passo e no ruído emitido, e seguiu precisamente em direção ao local onde tinha encontrado a senhora na tarde do dia anterior; ou pelo menos aventurava-se pelo caminho que lhe parecia ser o que lá levaria. O mistério das árvores tomava conta dele outra vez, a harmonia da flora trespassava-o como ontem, a majestade dos pássaros chamava a sua atenção como na tarde anterior. Tudo permanecia intacto, nada tinha sofrido a mínima alteração; ainda assim, era como se visse tudo pela primeira vez.


Era verdadeiramente como se os seus olhos revivessem o que acontecera… especialmente na aproximação ao local (acabou mesmo por o encontrar). A luz retornava a todo o seu brilho, a toda a sua intensidade… e a figura lá estava… no mesmo ponto, com todas as mesmas características… Existia unicamente uma diferença em comparação com todo o primeiro cenário. Desta vez, a jovem senhora não estava voltada de costas. Encarava-o frontalmente, com o mesmo encantador sorriso de ontem, como se já o esperasse.


Não foi necessária a troca de uma palavra que fosse a respeito disto para a comprovação desse mesmo facto.


Apeando e caminhando lentamente, levando o cavalo pela mão, seguiu em direção à rapariga, que o fitava com um olhar densamente penetrante, trespassador. Como desta vez o propósito da sua vinda se consumava precisamente ali, no encontro com aquela figura particular, e o seu surgimento tinha sido, considerava, inteiramente fruto da sua própria decisão, optou por proferir ele as primeiras palavras, enquanto procedia a uma ligeira e respeitosa saudação com a cabeça:

– Minha senhora, creio que seria fundamental e inevitável o meu regresso… encontro-me em profunda ignorância acerca de tudo aquilo que vos diz respeito, inclusivamente o vosso nome; não vo-lo inquiri ontem, precisamente por me terem parecido o momento e as circunstâncias inoportunas. Foi então para isso que vim hoje, esperando que a vossa graça não me julgue indevido: para vos pedir gentilmente que me resgateis da ignorância, se bem vos parecer.


Após ter terminado de falar, pouco seria dizer que não se reconhecia a ele mesmo. A donzela, sempre delicada no seu sorriso, deixava transparecer agora no olhar um ténue feixe de comoção maternal. Mostrou-lhe precisamente, como se disse, o que já ele suspeitava aquando da sua gradual aproximação – que ela já o aguardava –, sem no entanto pronunciar uma só palavra que o evidenciasse.

– Indevido de modo algum vos julgo, antes me alegro pelo vosso novo e diferente propósito... – afirmou, sempre pausadamente, docemente, provocando no Príncipe um abalo de tudo quanto o constituía. Acrescentou então, com crescente ternura – Porque o pedis, dou-vo-lo: o meu nome é Sinal. E se hoje era comigo que desejáveis vir ter, muito tenho que vos gostaria de contar e mostrar… Vinde comigo!


Uma inexplicável aurora de vivacidade, de êxtase, e de vontade invadiu e encheu o Príncipe. Não de forma semelhante a águas contidas numa barragem, que há muito aguardavam a sua libertação; antes, mesmo, a neve, neve pura das montanhas, que ao longo dos anos fora acumulando, e da qual brotava agora, com a chegada do verão, uma impetuosa e nova nascente.


Acedeu ao seu convite e seguiu-a. O seu diálogo já não se cingia ao mesmo local inicial, mas expandira-se; davam agora juntos um longo e belo passeio pela floresta. Por entre o mistério das copas e a fantasia da fauna e flora, conversavam livremente.


A maravilhosa rapariga mostrava-lhe os abissais encantos do bosque que conhecia; ainda assim, uma vida inteira de passeios não seria suficiente para os desvendarem nem de perto a todos. Contou-lhe também algumas coisas, merecendo especial atenção o facto de que nesta floresta habitava. Onde concretamente o Príncipe não procuraria saber; não só por receio de perturbar a sua delicadíssima companhia, mas sobretudo porque, verdadeiramente, com ela, não sentia a necessidade de tudo forçosamente conhecer e dominar no instante. A sua presença era, de algum modo, autoexplicativa – não na medida em que fosse a resposta a todas as suas perguntas, mas, em vez disso, a grande chave para a sua descoberta. Por isso mesmo, bastava.


Regressou, de igual modo, antes do pôr-do-sol. Trazia desta vez, atados a um pau que carregava, três raríssimas aves, da mais nobre das carnes, que apanhara num desses seus momentos de quietude. Tudo se seguiu da mesma maneira que no dia anterior, com a subtil exceção de que, desta vez, ao recostar-se, foi capaz de adormecer. Não apenas porque estivesse cansado da noite praticamente em branco que passara; não porque não tivesse com que ocupar a sua mente, nem tão pouco porque não estivesse alegre. Pura e simplesmente, em alternativa, porque o dia estava consumado.


VI

Um tempo passado, a Lua cheia dar-se-ia na noite do presente dia. O Príncipe e os seus guardas tinham partido na madrugada que se seguira ao banquete com as aves, atravessando inúmeras e grandiosas maravilhas da natureza. Encontravam-se agora, ao princípio da tarde, defronte dos Grandes Portões da Capital. Os Invencíveis Soldados do Reino já teriam regressado, e estariam todos prontos para se apresentar, ao fim do dia, quando a lua brotasse do ventre materno, diante da escadaria do Palácio, aguardando as ordens do Príncipe.


A sua viagem de volta caracterizou-se por uma grande incerteza. No princípio, quando ainda tinha a memória da belíssima senhora bem presente e os tentáculos do Desígnio estavam distantes, permanecia alegre; a sua boa disposição constante e a sua vivacidade transmitiam-se para os próprios Guardas Reais. No entanto, à medida que se ia gradualmente aproximando de tudo aquilo de onde viera, uma escura e carregada névoa começava a envolver o seu coração… A alegria ia cessando, a preocupação ia-o tomando-o a pouco e pouco. Não sabia como haveria de reagir quando estivesse de novo com seu pai, quando ele lhe indicasse a próxima campanha… O que era tudo isso, depois do que tinha visto? Talvez fosse apenas mera preocupação excessiva, característica de um período de descanso com a mente afastada do que importava, no qual esta julgava poder saltar de assunto em assunto como lhe aprouvesse e ocupar-se com questões irrelevantes ao Desígnio… Provavelmente, com efeito, depois desta longa jornada, seria agora tempo de voltar e esquecer o que tornava o espírito fraco e distraído.

Porém, sempre que se recordava da figura, agora distante, da maravilhosa figura feminina, da maneira como ela lhe perguntara o nome, como lhe mostrara com júbilo tudo o que conhecia naquele lugar onde apenas o mistério reinava… Não poderia ser mentira. Não poderia tudo isto ser apenas uma mera distração, um mero evento irrelevante. A fraqueza e a doença residiriam precisamente em apelidar assim quem experienciasse algo semelhante. A verdadeira questão, para ele, era esta: quem lhe garantia que o Desígnio, a guerra, tudo aquilo que o movia, não eram, esses sim, a grande distração, que o afastava de um mundo que nunca antes sequer conhecera?

Agora, observando os graves e fortes portões da cidade, escutando os passos abaladores dos soldados, as coisas ganhavam clareza. Fitava os portões, as imponentes arquiteturas com que um dia sonhara… Não havia ali beleza, não havia ali espanto, como vira naquela distante noite ao luar. Não havia ali encanto, não havia ali surpresa, como encontrava sempre na Floresta do Mistério. Não havia ali vida, não havia ali juventude, como em cada gesto da pura senhora. Não havia ali comoção, não havia ali interesse profundo, como em cada olhar seu. Ali, só havia força. Poder. Movimento. Agitação. Planos. Idealização. E, ironicamente, pequenez, muita pequenez, num olhar quadrado, reduzido, e profundamente distorcido…


Era tempo. A tarde avançava, sem misericórdia dele. Devia entrar na cidade; devia reunir-se com seu pai. Não sabia ainda o que lhe dizer. Mas não se poria a imaginar: esperaria o confronto com ele em pessoa – responderia apenas ao que lhe fosse perguntado, diria apenas o que tivesse de dizer. A primazia da palavra pertenceria exclusivamente ao pai – afinal, não era ele o Rei?


Entrou, então, na cidade; os guardas seguiam-no de perto. A população reunia-se para o ver, mas desta vez ele não erguia a mão. Trotava lentamente; depois, mais perto do Palácio, continuou a passo. Por esta altura, muitos soldados se reuniam já à frente dos grossos portões de madeira, junto à escadaria. O ofício das suas vidas era realmente aquele: para o combate se juntavam, para aguardar o próximo se dispersavam. Não havia um único homem que não fosse chamado ao serviço, fora os inválidos. A totalidade da sua existência era gasta a aperfeiçoar a “Mestria da Guerra” – ora sendo duramente treinados nas cidades, ora sendo perigosamente expostos na guerra, para que ganhassem experiência.


Todos se voltavam para o Príncipe à sua passagem; ele, desta vez, limitou-se a acenar-lhes com a cabeça em gravidade. Apeou e subiu a escadaria, com os Guardas Reais a carregarem o pelo e cabeça do urso caçado atrás dele, cujas partes que serviriam de troféu tinham sido conservadas com sal para não se deteriorarem na viagem. O pai aguardava-o com o mesmo sorriso de sempre; como era realmente diferente do da bela senhora!

Saudaram-se e subiram para a Sala do Trono; da parte do Príncipe, no entanto, não houve o rotineiro calor familiar. O pai presumiu que estivesse cansado da expedição.

– Mas que grande caça, meu filho! – exclamou o pai quando chegaram à sala, após os guardas terem colocado o pelo e a cabeça do animal em exposição sobre o chão. – Que porte avassalador! Os vossos feitos são, mais uma vez, dignos de louvor e admiração da minha parte, e assegurar-me-ei de que por todo o Reino se espalhe a notícia da grande besta que domesticastes.

– Não era muito grande; media apenas quatro homens na barriga e um e meio levantado dos pés à cabeça – retorquiu o Príncipe, sem entusiasmo.

– “Quatro homens na barriga”?! Pois e como não considerais tal elevada dimensão? Vejo que estais já endurecido do combate, mais uma razão para que me orgulhe de vós!

A resposta do Príncipe foi serena, mas grave, como se de algo sério falasse.

– Meu pai, reforço: aos meus olhos, o feito não foi grande.

A partir deste momento, o Rei começou a preocupar-se com a séria impenetrabilidade do filho, e procurou encorajá-lo:

– Pois bem; então que se erga uma estátua no local do triunfo, para que todos a admirem e contemplem, e sejais inspirado, através do reconhecimento de todo o povo, para a grandeza do que obrastes!

A serenidade do Príncipe permanecia intacta.

– Não busco que eles me reconheçam, nem desejo que alguma estátua seja erguida; qualquer obra da nossa mão naquele lugar constituiria por si só uma catástrofe.

O pai não era capaz de compreender o modo como ele falava, e tentou investigar as causas da sua seriedade, deixando escapar já uma ligeira perturbação:

– Meu filho, o que sucedeu? Porventura viestes ao encontro de algum miserável traidor pelo caminho, que vos baixasse a moral?

– Miseráveis não encontrei; – ripostou o Príncipe seca, fria, cortantemente – apenas quem de maior realeza do que eu fosse feito.

– Que dizeis, que dizeis?! – inquiriu o pai, elevando o tom de voz – Dizei-me agora, depois dessa insidiosa afirmação, de uma vez por todas: o que aconteceu?


A quadração no pensamento era agora visível como nunca aos olhos do Príncipe; a recusa de toda e qualquer sugestão que aos auspícios do Desígnio escapasse impunha-se mais do que em qualquer outra ocasião passada. Até agora tinha tentado manter-se fiel ao que decidira às portas da cidade, porém, não havia, a partir deste ponto, contorno possível. Era necessário intervir; era preciso que assumisse ele as rédeas da conversa.

– Meu pai, procuro o modo mais íntegro com que vos possa dizer isto. Nunca até ao tempo presente tinha conhecido para além do Desígnio. Nunca como nestes dias tinha visto algo que valesse a pena, algo que merecesse o cuidado da mente, que não à guerra dissesse respeito. Deparei-me com coisas maiores do que eu, com quem fosse como eu. Existem lugares neste Reino sobre os quais não detemos poder… Existem recantos nestas terras que a nenhum homem podem alguma vez pertencer… Existem seres nesta vastidão que conhecem a felicidade… Como posso explicar isto, meu pai? Como poderei explicar isto? Explicá-lo, de facto, não poderei, nem de compreendê-lo sou capaz! Mas uma coisa posso fazer, e essa é talvez a única campanha que me compete, e que ambiciono começar de este dia em diante… Devo partir, devo ser outro, pois desejo conhecer, desejo explorar esta imensidão que me cerca e que não alcanço compreender… Foi isto que sucedeu, meu pai, foi isto: o Desígnio já não me basta, revela-se pequeno em comparação com tudo isto. Porque se o que quero realmente é a plenitude… se o que desejo é de facto a totalidade do meu espírito… como a poderei encontrar numa ideia ou num sentimento longínquos? Ainda que todos os povos sejam subjugados! Ainda que toda a terra e todo o mar sejam meus! De que me importa… se não sei de que são feitos?


As suas palavras foram como que uma faca trespassando o coração de seu pai, à traição, pois nunca foram esperadas. Se naquele dia, na floresta, o Príncipe não se reconhecia a ele mesmo… hoje era outro. Era o mesmo, mas era outro. De facto, o Desígnio era a única coisa, entre tudo o que era real ou imaginário, que aparecia à sua mente sem albergar paradoxos…

– Uma fatal doença vos atingiu, meu filho… O vosso espírito foi corrompido… Terei eu, terei eu, de eliminar o meu próprio herdeiro?

Uma agonia profunda subjazia às suas palavras; mas, acima dela, estava o Desígnio.


Não restou a Sua Majestade outra alternativa senão chamar, berrante e em afundada ira, os Guardas Reais, os quais, sobressaltados, apareceram já quando o Príncipe se escapava pelas

portas por que haveriam de entrar. Correu até a saída do Palácio; parou na escadaria, onde, à medida que o sol se punha, já todos os Invencíveis Soldados do Reino se aglomeravam diante de si. Declamou-lhes, à semelhança de como fazia nas grandes batalhas de outrora:

– Soldados de todo o Reino! Escutai-me com atenção, que serei breve e partirei de imediato! Tendes diante de vós um cisma, e compete-vos hoje decidir de que lado ficareis… Meu pai está cego, cego pelas suas próprias ideias, e recusa-se a cessar as intermináveis campanhas… Se o que buscais é a fama e a glória, se o que buscais é a guerra e a ocupação vã da mente, ficai com o Rei… Mas se o que desejais é a verdadeira liberdade, se o que quereis realmente é sair e ver o que sempre vos foi oculto, vinde comigo, e acompanhai-me numa longa jornada, que uma última batalha inevitável se avizinha!


Mal terminara ainda de falar quando os Guardas, os mesmos guardas que o haviam acompanhado e servido desde sempre, se preparavam para o deter com espadas e amarras. Ele, porém, subiu num salto para a sela do seu cavalo, e saiu à carga, mais veloz que uma lança.


Vários o seguiram numa fuga apressada e incerta, vários ficaram para trás em pânico e dúvida. Alguns foram ainda os que heroicamente se lançaram naquele instante sobre os Guardas Reais, ao verem que se aprontavam para deter o seu Comandante. Um tumulto geral havia sido lançado sobre todos aqueles homens… e cada um deles importava agora.

Muitos dos que o seguiram não tinham compreendido as suas palavras; acompanhavam-no, unicamente, porque sempre lhe tinham obedecido a ele, porque sempre tinha sido ele o seu companheiro ao longo de toda a vida.


VII

Oito luas cheias depois da desse dia haviam passado. O Príncipe, como dissera aos soldados, partira numa longa viagem, atravessando a vasta e enorme extensão do Reino com aqueles que o seguiram, passando por todas as mais remotas aldeias, vilas, cidades, terras, e campos povoados que encontrara; convidava todos quantos quisessem a juntar-se a ele, preparando-se para uma decisiva batalha contra o Rei, e contra os Invencíveis Soldados do Reino.


Tinha alcançado um total de sete mil fortes homens a acompanhá-lo, os quais fitavam duramente os adversários do outro lado da planície. Do seu lado esquerdo tinham altas e longas colinas, que se prolongavam até às montanhas distantes na retaguarda dos soldados do Rei. Para a sua direita e adiante, estendia-se a infindável planície, que apenas a pouco menos de um dia de caminho apresentava um rio, uma pequena variação no terreno.


Mas os Invencíveis Soldados do Reino tinham a vantagem… se ele tinha conseguido reunir sete mil homens, dez mil tinha o Rei prontos para o combate, aguardando os “insidiosos traidores” já com brados e lanças de ira… Era já tarde demais para os tentar atrair para os terrenos difíceis montanhosos; ambos os exércitos tinham tentado flanquear-se um ao outro antes da batalha, mas sem sucesso. O confronto derradeiro, sem obstáculos ou vantagens, que não o número ou a habilidade e o engenho, era inevitável.

Mais uma vez, iniciariam a batalha sob o total esplendor áureo do sol, sob a sua altura de maior radiação, a meio do dia.


Todos estavam já posicionados. Os homens a pé aguardavam de lanças bem assentes no chão e espadas preservadas na bainha; os cavaleiros mantinham os cavalos em disciplina, à medida que os relinchos se dissipavam; os arqueiros apontavam os arcos para o chão, esperando prontamente qualquer indicação. O resto, de ora em diante, competia ao seu peculiar Comandante, o Príncipe…


Enquanto encarava os adversários, e olhava depois para os seus próprios soldados, deu-se conta da diferença despoletada nele próprio, e também naqueles que estavam a seu lado, no simples prazo de pouco mais de um ano de luas cheias… Uma chama ardia dentro dele, sim, e dentro de cada um deles. Mas, agora, já não incinerava os seus olhos, já não os enchia de fúria, já não lhes fazia ver diante de si um inimigo, o Inimigo; despertava, antes, e reavivava, continuamente, o interior do seu coração, e quem tinham à frente já não eram odiosos e corrompidos enfermos – mas pobres e cegos semelhantes…


Cinco passos em frente deu o Príncipe. Já não galopava, porém, à frente de todos os seus soldados, esperando que se reverenciassem e erguessem de seguida à sua passagem. Pediu que abrissem um corredor entre eles, para ele poder passar e olhar cada um… As suas palavras não eram mais carvão bruto, mas testamento da nova aurora que brotara na sua alma:

– Companheiros! – começou, com uma subtil comoção valente – Meus amigos! Naquilo que sucederá agora, culminará toda a longa jornada que até hoje percorremos… Dias e noites, por vales e florestas, montanhas e rios, terras e cidades, à procura de quem como nós mais desejasse, em busca de quem à nossa semelhança uma oportunidade para conhecer-se quisesse… Pois bem, aqui chegámos, finalmente, oito luas depois do princípio; temos diante de nós aqueles que ao Desígnio se fiaram… Eis o que vos digo, meus amigos: eu já não busco esse mesmo desígnio… Eu já não quero para mim uma vida de pensamento, de distração, de ocupação… Aquilo que ambiciono realmente… é conhecer de que carne sou feito, para que ilha distante navego, de que porto remoto parto. É esta a minha única motivação, é esta a minha única moral… Ainda que hoje nesta planície caia, e sobre esta terra fique, não me preocuparei – porque sei que persegui o horizonte… É com isto que vos convido, companheiros, tal como no primeiro raio de sol, desta nova manhã: eu lutarei, com o meu cavalo, continuando o que percorri… Quem da mesma insaciabilidade que eu for feito… quem como eu quiser abraçar o horizonte… que me acompanhe!


Sob esta última exclamação, cujo eco as distantes montanhas ao fundo da paisagem alcançou, procedeu a entoar um cântico, a canção da sua expedição, que os soldados já tão bem conheciam, e desde logo acompanharam, aos poucos e poucos, até formarem uma só voz:

“Marcho, lado a lado

Com o meu velho amigo

Com ele já lutei,

Com ele já caminhei.

Parto agora, ao raiar

Da nova aurora celestial;

Busco um outro céu

Busco uma outra terra;

Onde possa olhar para mim mesmo

Onde possa ser quem sou”


A resposta ao seu nobre cântico consistiu numa implacável chuva de setas por parte do inimigo, indignado, a qual despertou a batalha. A esta, outra se seguiu, do lado dos arqueiros do Príncipe. Em breve, todo o céu sobre a planície estava castanho, e só cessou de assim ser visto quando as cargas se iniciaram, e o confronto próximo começou.


Perto do fim do dia, quando o sol se começava a dirigir para o seu leito noturno, já poucos homens restavam de pé. O combate durara toda a tarde. Os soldados do Príncipe lutaram heroicamente, infligindo muitas baixas, mas os sinais da sua clara derrota começavam já a ser visíveis. Ele próprio tinha combatido, como prometera, a seu lado, nas linhas da frente, encorajando todos e participando verdadeiramente em tudo com eles. Restavam-lhe agora, porém, perto do fim, pouco menos de dois mil homens; ao passo que ao adversário ainda sobravam quatro milhares. O campo de batalha abundava em sangue, suor, e cadáveres.

Prosseguia o Príncipe, com os seus amigos, firmemente, o cântico; desde o final do seu discurso, este não fora interrompido uma única vez. Cantavam já ao som da sua própria derrota… mas confiantes na vitória que mais importava.


Tudo assim aparentava… Tudo assim era revelado e claro aos seus olhos… quando, subitamente, sob o ruído de milhares de cavalos galopando sobre o chão, uma trombeta soou, próxima, nas colinas à sua esquerda.


O Príncipe voltou as atenções por um momento; não só ele, na verdade, mas todos os que sobre a planície se erguiam. O que viu era indescritível: contrastando com o cor-de-laranja do céu que ia adormecendo, surgiam, velozes, milhares e milhares de figuras; eram cavaleiros, erguendo bandeiras bem conhecidas de outrora… era a velha Resistência. O Príncipe julgava-a totalmente extinta – há muito tempo, desde os primeiros dias do novo Reino, ele próprio comandara campanhas e campanhas para a erradicar da terra… Mas, aparentemente, ela ainda restava, e em maior número agora do que ele…


Os cavaleiros romperam, à carga, triunfantes, pelo campo de batalha, flanqueando com toda a vantagem os homens a pé dos Invencíveis Soldados do Reino. À medida que mais e mais caíam, sucessivamente, com a despedida da luz, decapitados pelos gládios dos cavaleiros, os soldados do Rei depressa se renderam… e a vitória ia para o Príncipe, juntamente com a Resistência.


O Príncipe não podia acreditar nos seus olhos. Mais uma vez, muitas perguntas teria… Mas, antes que sobre a mais fundamental de todas elas se pudesse debruçar, um dos Comandantes da Resistência, provavelmente aquele a quem todos obedeciam, aproximou-se dele, num galope rápido e certeiro… como se já o contasse ali, naquele preciso lugar, e o pudesse reconhecer.


Ao Príncipe, as feições do cavaleiro também não eram inteiramente desconhecidas. Apresentavam uma distante reminiscência de um rosto, de uma particular face… O Comandante da Resistência assim prosseguiu, em júbilo, e com confiança:

– Sua Alteza! Ao vosso dispor nos apresentamos, saudando-nos: somos os Homens da Resistência. Sou, pessoalmente, o Comandante de cada um destes cavaleiros; provimos todos de bosques distantes. Após luas e luas de caminho, encontrámos-vos, por fim! Minha preciosa filha, Sinal, avisou-me de que algures por estas terras estaríeis combatendo, e que o nosso apoio seria fundamental nesta batalha. Pelo que vejo, chegámos ainda a tempo!


O último ténue feixe de cor-de-laranja desvanecia-se, dando lugar ao escuro azul estrelado que se adensava no céu.


E a jovem donzela lá estaria, no profundo mistério do bosque, esperando-o, até que fosse rainha…


Por Lourenço Baptista (12.º ano)

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